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21 de Junho de 2005 às 13:59

A solução final, digo, fiscal

A solução foi proposta por um governante menos adepto das vantagens do «choque tecnológico»: nada mais, nada menos, que um imposto sobre os telemóveis.

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Se como afirma o provérbio popular: «tristezas não pagam dívidas» (também orçamentais), estamos certos que os leitores aceitarão o tom do texto de hoje, escrito em período de subida de temperaturas e em vésperas de um verão que se prefigura quente (e não estamos só a referir-nos às previsões meteorológicas...).

No início do ano 15 do séc. XXI, foi constituída uma Comissão para avaliar, de novo, o estado das finanças públicas, nomeadamente após o sucesso alcançado cerca de dez anos antes (2006), em que, como estarão recordados, todos os problemas orçamentais e de necessidade acrescida de receitas públicas tinham sido resolvidos de forma que se supunha estrutural e definitiva.

As medidas tomadas nessa altura teriam tido por fonte inspiradora - segundo declarações à Comissão de um Ministro já reformado -, um surpreendente «exercício de imaginação» ocorrido em algumas autarquias britânicas, a saber:

Segundo rezava o Expresso de 21 de Maio de 2005 - jornal muito lido à época - algumas câmaras, como as de Westminster e de Liverpool, preocupadas com o custo elevado da limpeza dos pavimentos da sujidade provocada pelas pastilhas elásticas jogadas no chão (existiriam cerca de 300 mil pedaços de «chewing gum» só em Oxford Street!) - portanto, com a «despesa pública» - decidiram avançar com medidas drásticas e propor a introdução de um imposto sobre os «ruminantes» consumidores de pastilhas, «desporto» largamento praticado naquele país.

Esta notícia, levou os governantes portugueses, confrontados com um défice elevado das contas públicas, a interrogar-se sobre qual o sucesso que medidas do género teriam entre nós, sempre que fossem, é claro, devidamente adaptadas aos respectivos hábitos culturais e sociais. Isto é, e no caso português, qual o tipo de prática social generalizada que poderia ser o alvo tributário de um imposto que respeitasse três dos objectivos fundamentais da política fiscal: base ampla, taxas baixas, e receita abundante?
 
A solução foi encontrada e proposta em Conselho de Ministros, por um ministro menos adepto das pretensas vantagens do adiado «choque tecnológico»: nada mais, nada menos, que um imposto sobre os telemóveis!

É que se havia «desporto» que os portugueses adoravam praticar, esse era um deles! E faziam-no a toda a hora: na praia, no campo, e no emprego (e até no desemprego!); à mesa, na cama, e no banho; ao volante, no cinema, ou num concerto! Era, portanto, uma «praga» semelhante à da pastilha elástica!

E face à complexidade de muitos dos impostos então existentes, com as suas centenas de artigos, dezenas de taxas, impressos, obrigações, prazos, essa foi também uma oportunidade única para começar a simplificar o sistema. Assim, a partir daí, todo o proprietário de um telemóvel passou a pagar o novo imposto, e existindo mais de 7 milhões de telemóveis (contas da altura), tal imposto permitiu, sem grande resistência inicial, baixar drasticamente o défice orçamental, constituindo um «case study» que passou a integrar o manual de boas práticas da Comissão Europeia.

A situação foi, porém, algo ilusória.

Tudo terá começado, segundo depoimentos recolhidos pela Comissão, com a iniciativa conjunta dos ministros que tutelavam as forças armadas e de segurança que, no ano seguinte, propuseram a isenção do imposto dos telemóveis para oficiais e praças, tendo o assunto sido alvo de uma proposta de lei enviada ao Parlamento. Durante a discussão na AR, um parlamentar progressista da ala esquerda do hemiciclo, defendeu uma redução do imposto para os telemóveis de preço mais baixo, habitualmente adquiridos por operários, funcionários públicos, pessoas de baixos rendimentos ou com idade de reforma adiada. E, por maioria de razão, foi aprovada a extensão da isenção aos telemóveis detidos por pessoas com mais de 65 anos, por deficientes, por crianças em idade escolar, e por professores com «horário zero» (se não, como passar o tempo...?). Pelo que para compensar a inerente quebra de receita, foi decidido, com a oposição do centro-direita, o aumento do imposto sobre os telemóveis de «última geração», gadget de luxo muito procurado por pessoas endinheiradas.

A transmissão de telemóveis entre particulares e empresas, de taxas decrescentes em função da antiguidade e uso, também não foi esquecida, pelo que se tornou necessário criar uma «base de dados» e uma direcção-geral de registo de telemóveis para a respectiva gestão. A própria possibilidade de transmissão «mortis causa» do aparelho passou a ser legislada, com taxas variáveis em função do grau de parentesco dos respectivos titulares, e integrando uma não-sujeição do conjuge sobrevivo ou em benefício de filhos menores.

Na continuação, um influente «opinion maker» interrogou-se na TV sobre as razões porque não eram tributados os aparelhos telefónicos fixos, dado que tal situação consubstanciava uma discriminação inaceitável e uma protecção encapotada à empresa pública que explorava tal serviço. O presidente da Comissão Europeia chegou mesmo a emitir um comunicado sobre o assunto, o que determinou a aprovação de nova adenda impositiva.

E dado que situações de cidadãos que não possuissem telemóvel ou telefone fixo poderiam configurar prática de fraude à lei, estabeleceram-se sanções para quem usasse antigas formas de comunicação à distância, do tipo utilização de bandeiras, sinais de fumo ou pombos-correio, porque também ambientalmente incorrectas.

Paralelamente, todo o possuidor de telemóvel deveria ser portador de uma licença anual de utilização, da qual constasse o estado civil, fotografia de frente e de perfil, impressão digital e morada do utilizador, data de aquisição, origem, preço e descrição sumária do equipamento, número de reparações e domicílio do agente representante da marca. Tudo muito inspirado na antiga licença para uso de acendedores e isqueiros do tempo da «outra senhora».

Por fim, a lei foi aprovada com 1.245 artigos, múltiplas isenções, 10 listas com diferentes tipos, cores e modelos de telemóveis, e 30 taxas de tributação!

E dando satisfação a iniciativa louvável de «lobby ambientalista», o Governo veio a legislar posteriormente no sentido da criação de um generoso subsídio ao abate, recolha e reciclagem de telemóveis antigos que, em alguns casos, ultrapassava o próprio valor do equipamento.

 Contudo, e segundo o texto do relatório da Comissão, a «machadada final» na solução fiscal de 2006 veio a ocorrer no Natal de 2010.

Nesta quadra assistiu-se a um inusitado recurso ao «subsídio para abate» e, simultaneamente, ocorreu uma explosão nas importações de brinquedos (dados do INE), bem como uma corrida às «lojas chinesas»:

Os portugueses tinham descoberto os «walkie-talkies» que, por merecerem protecção especial dado o seu carácter educativo, não estavam sujeitos a tributação.

O velho efeito «Dupuit-Laffer» tinha, finalmente, actuado!

Nota 1 - Esta fábula foi inspirada em «Imposto sobre os guarda-chuvas», recolhido em Banacloche, J. (1986), «Hablando de Hacienda».

Nota 2 - Obviamente que se trata de ficção, e qualquer semelhança com factos, pessoas e medidas, é pura coincidência.

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