Opinião
O teste «Kafka»
«Os custos de cumprimento fiscal incidem de forma frequentemente regressiva, sobrecarregando mais os contribuintes de menor capacidade económica e as empresas de pequena e média dimensão».
Em estudo publicado há dez anos atrás (Ciência e Técnica Fiscal, 1995) procuramos analisar, desde uma perspectiva teórica, os custos associados ao financiamento público através de impostos, tendo-os na altura sistematizado em quatro grandes categorias, a saber:
- «custos de oportunidade», derivados da redução da capacidade económica dos indivíduos por virtude do pagamento de impostos («efeito-rendimento»);
- «custos de eficiência», que podem resultar do facto dos impostos arrastarem frequentemente consigo modificações nos comportamentos económicos eficientes dos agentes, indivíduos e empresas («efeito-substituição»);
- e «custos de administração» e «custos de cumprimento», respectivamente públicos e privados, decorrentes dos recursos utilizados na manutenção, funcionamento e cumprimento do sistema fiscal, ou de um imposto em particular.
Reportando-nos especialmente a estes últimos, apetece-nos citar Smith quando, por um lado, defendia que «todo o imposto deve ser arquitectado tão bem que tire o mínimo possível do bolso das pessoas para além do que traz para o erário público», e, por outro lado, referia que «todo o imposto deve ser lançado no tempo ou modo mais provável de ser conveniente para o contribuinte o pagar».
Na realidade, e na impossibilidade de prescindir do recurso aos impostos, a não ser no «reino da utopia» ou em algum «paraíso fiscal» menos recomendável, uma das preocupações cimeiras do decisor político deve ser a minimização desses diversos custos.
Do ponto de vista dos custos de administração, um imposto «pode tirar ou afastar do bolso das pessoas muito mais do que arrecada para o tesouro público, dado que o seu lançamento poderá requerer um grande número de oficiais cujos ordenados podem consumir a maior parte do produto do imposto e cujos emolumentos podem impor outra taxa adicional sobre o povo» (A. Smith). Ou, dito de outro modo, o funcionamento e gestão do sistema fiscal induz a despesas e encargos com a manutenção e actividade dos departamentos públicos competentes em matéria de cobrança e fiscalização, que se traduzem, nomeadamente, em vencimentos e outros encargos com os funcionários, assim como em custos administrativos, de instalação e de equipamento.
Simultaneamente, os contribuintes e outros agentes económicos são confrontados com custos de cumprimento de diversa natureza decorrentes do sistema de regras fiscais que sobre eles impende, e que assumem, fundamentalmente, três manifestações (Sandford, 1989):
- «encargos monetários directos», por exemplo, com o pagamento de serviços de consultores fiscais ou de técnicos de contas, com remunerações pagas a empregados que dedicam parte ou a totalidade do seu tempo a assuntos fiscais da empresa e ao cumprimento de obrigações acessórias várias;
- «custos em tempo», resultantes do preenchimento pelos contribuintes das declarações fiscais, das deslocações e tempos de espera nos serviços fiscais (mas também no acesso aos sites informáticos!), da manutenção de registos, da retenção e entrega de imposto, de fornecimento de informações, etc.;
- e «custos psicológicos», que consistem sobretudo, em «stress» e insegurança associados à complexidade, diversidade e dispersão da legislação e das respectivas obrigações fiscais, bem como a fenómenos de discricionariedade na actuação dos serviços tributários, e de falta de informação e certeza nas respectivas actuações.
Em termos de distribuição temporal, tanto os custos de administração como os custos de cumprimento podem subdividir-se em «temporários» e «permanentes», decorrendo os primeiros, nomeadamente, de alterações permanentes ou profundas no sistema fiscal existente (nomeadamente, reformas fiscais). Isto significa que, tendencialmente, quanto mais frequentes forem as mudanças num sistema fiscal, tanto maiores custos «extraordinários» serão acrescidos aos custos regulares de funcionamento, duplamente indesejáveis quando, como infelizmente acontece, essas alterações não contêm em si ganhos significativos de modernização e simplificação.
Por outro lado, existe uma estreita ligação entre custos privados e custos públicos associados ao funcionamento do sistema fiscal, dado o forte elemento de transferibilidade entre custos de administração e custos de cumprimento. É por isso defensável a ideia de que ambos devem entrar explicitamente no processo de avaliação e decisão fiscal, em conjunto com outros objectivos mais «clássicos», como os da equidade ou da neutralidade.
Tal será tanto mais relevante quando, por razões de «compressão» da despesa pública, de há muito se vem verificando, também em Portugal, uma transferência de custos («tradicionais») das administrações públicas para o sector privado, nomeadamente empresas, sujeitas ao cumprimento de múltiplas, complexas e onerosas obrigações fiscais, nomeadamente de tipo informativo (também informático), cuja justificação e utilização eficaz, nomeadamente em termos de cruzamento de dados era, pelo menos até há muito pouco tempo entre nós, quase nula ou inexistente.
Em certo sentido poderá, inclusive, recomendar-se que a repartição dos encargos referidos, ainda que no contexto de uma preocupação de minimização do custo global dos mesmos, deve orientar-se no sentido de «maiores» custos de administração (públicos) e «menores» custos de cumprimento (privados), e não o oposto, para um mesmo nível baixo de custos totais de funcionamento do sistema fiscal.
É que, se no que toca aos custos de administração (enquanto componente das despesas públicas) se pode considerar que os mesmos são distribuídos entre os indivíduos de acordo com a forma socialmente considerada mais desejável (ou possível) de repartição da «carga fiscal», e sujeitos a «escrutínio político» regular (via votação orçamental anual), os custos de cumprimento, ao contrário, incidem e são suportados de forma algo «arbitrária» e, frequentemente, regressiva, sobrecarregando mais, em termos relativos, os contribuintes de menor capacidade económica e as empresas de pequena e média dimensão, ainda quando destinatários de (pretensos) «regimes simplificados».
Também por isso a ideia, já antes aqui defendida como desejável, de submeter a um teste obrigatório de «necessidade efectiva» e de «coerência administrativa» todas as medidas (nomeadamente, regulamentadoras) de incidência fiscal (e não só), se se pretende que o sistema fiscal se torne, para além de mais simples, também cada vez menos desnecessariamente oneroso para os contribuintes.