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25 de Agosto de 2006 às 13:59

Crónica do jovem português comum

Horizontal solidão, te desconhece e anula. Estás sozinho, homem sem gnomo! que o resto é céu recurvo e indiferença.
FERREIRA GULLAR - «A Luta Corporal»

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Caminhas altaneiro e feliz. Caminhas para um destino que julgas certo. Caminhas e ainda não foste castigado pelos males de inveja, pela dureza da vida, pelas ciladas que te vão montar muitos daqueles de quem és amigo e teus amigos se afirmam.

És novo e alegre. Não sabes muito bem o que significa ser feliz, mas és alegre, pelo menos por enquanto. O teu horizonte é claro e nítido. Os outros, há anos na repartição, no escritório, na oficina, na Redacção, são os ogres de uma história a que não desejas pertencer: velhos canastrões que não souberam gerir os seus futuros e se enredaram em pequenas pelejas que não compreendes e, afinal, te não dizem respeito. Ou dizem?

Sobes, julgas tu que para o Olimpo, e vês os outros, julgas tu, a descer o salgueiro. Ensinaram-te que é necessário competir, que é preciso competir, que é urgente competir, que é imprescindível competir, que é imperioso competir. Competir fixou-se como marca d’água da tua existência. Tudo é precário, tudo é transitório: sobretudo o emprego. Para o manteres terás de perder um pouco da tua primitiva humanidade e, talvez, também, de ceder um escasso pedaço da tua integridade pessoal.

Desprezas a política, mãe de todos os males, e manifestas a inclinação de não te envolveres em coisa alguma, muito menos em sarilhos que possam ofender ou surpreender aqueles que quem dependes, ou julgas que. Chegas mais cedo do que os colegas; porém, amanhã, alguns deles vão chegar ainda mais cedo do que tu, sobressaltados por essa tua aparência de servilismo. Ou será mesmo?

És muito jovem mas trajas com cores severas e cortes circunspectos. Reparas que os teus colegas vestem todos de igual. Nas noites de sexta-feira envergas, então, roupa «desportiva», leve e solta, e vais para as Docas ou para o Bairro Alto. Bebes cerveja por copos de plástico. Encontras-te com companheiros de escritório, ficam muito embaraçados, depois sorriem, numa animosa cumplicidade que não resiste à próxima segunda-feira.

Conheces razoavelmente inglês, és proprietário de estupenda colecção de CD’s, com gravações poderosas de Radiohead, Brian Eno, Arcade Fire; não estás muito familiarizado com a literatura, sabes, levemente e por ouvires dizer, de Saramago e de Lobo Antunes, achas graça, pouca, mas achas, ao Gato Fedorento, embora prefiras o Levanta-te e Ri; às vezes compras a Blitz, e aprecias Liliana Queirós e Carla Matadinho. Nem sempre, mas ocasionalmente, vais ao cinema, elegendo filmes «de acção» - para relaxar...

Representas aquele tipo de europeu conhecido pelos «mileuristas»: ganham, mensalmente, essa importância (mil euros=200 contos), estão a prazo, sob apertada vigilância do «superior hierárquio», no caso português «a recibo verde», e a espada do Dâmocles, teu director, pende sobre a tua cabeça. Não estás seguro em coisíssima alguma, sobretudo no emprego. Todavia, se te despedem, devido à «estratégia de empresa» ou à «lógica do Grupo», inscreves-te no desemprego, durante uns meses auferes o determinado pela lei e, depois, voltas à mesma roda desgastante.

Não amas: namoras. A palavra amante suprimiste-a do vocabulário. Não casas: vives com. Preferentemente junto de alguém com apartamento. Adquiriste carro a prestações, e o mesmo estás prestes a fazer com as férias no estrangeiro. Esperas um golpe inusitado de sorte (a sorte é sempre inusitada) para, talvez, te meteres na compra de um andar. No entanto, és assaltado pelo receio: dois amigos teus ficaram sem casa e sem dinheiro: não pagaram ao banco e o banco cumpriu a lei.

Andas a par com as marcas de vestuário, usas cremes, loções e perfumes incisivos. Divertes-te com as idiossincrasias culturais dos teus pais, a quem repugna o casamento entre homens e entre mulheres, e que desentendem o significado da palavra metrossexual, assim como a exibição de filmes e de séries nas televisões sobre a natureza recôndita dos prazeres humanos. «Uma vergonha!», exclamam. «É a vida!», dizes tu.

Realizas um trabalho que te não satisfaz. Mas cumpre-lo com rigor e tenacidade, embora sem devoção. Ignoras se, apesar de tudo, do teu esforço, da sua bajulação, da tua reverência, «eles» irão renovar o teu contrato. «Eles» são uma entidade abstracta, a voz sem rosto, o rosto sem voz, a voz sem modulações de alguém que dirige, que administra, que manda. Quem?

Tiraste um curso superior porque os teus pais quiseram vingar, no teu triunfo, as derrotas sofridas com resignação ao longo de uma vida repleta de agravos e de caminhos fechados. Eles ambicionavam-te maior do que tudo o que é visível, um rápido destino, a chama que não bruxuleia porque firme e decisiva. Porém, as coisas do mundo não dispõem de uma perfeição que justifique as esperanças dos pobres mortais. E há poderes desconhecidos, imperiosos e impeditivos.

Os teus pais acreditavam ser possível a criação de outros tempos novos, de homens saídos de remotos sonhos, de sonhos que estavam à altura desses homens. Não era o homem novo, sim o homem com a força e o júbilo capazes de mudar, ainda mais, as minudências com que isto foi construído. Acabaste por ser um jovem velho, moldado a bel-prazer dos compradores de corpos e de almas. Fizeram de ti um ser de obediências absolutas, marcado pelo medo, e até deixaste de perguntar pelo menino que foste.

Não percebeste? Que importa o teu nome, num país de dez milhões e tu és apenas um? Que esperança? Tudo se dissemina, tudo está organizado e previsto. Estás um tempo num sítio, e a seguir mandam-te embora, até obteres o subido favor de outro lugar contingente, sob o varejo de alguém desconhecido que, por seu turno, obedece cegamente a alguém também por ele desconhecido. Não tens para aonde ir, não tens como escapar.

O sistema, agora, não permite a antinomia entre o certo e o errado. Os instrumentos morais, sociais e de solidariedade fornecedores do viático ideológico e político foram integralmente condenados e, logo-assim, aniquilados por um método impeditivo da interrogação. Chamar selvagem ao homem primitivo é cometer atroz injustiça. O homem pós-moderno, detentor de informação e de utensílios culturais e tecnológicos quase ilimitados, demonstra um comportamento muito mais selvático. E as suas acções deixaram de constituir a base da sustentação vital. Repito: deixou de haver certo e errado. O que existe é o Grupo, a Corporação, a Empresa que asseguram e fomentam uma peculiar forma primitiva de viver. Faz falta o coração.

Rapaz: a valoração da vida espontânea, com regras humanas e normas adequadas às singularidades de cada um, foi liquidada. Definitivamente? A poesia é indestrutível. E a vida é um acto poético - ou não é.

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