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Continuar a ficção

Depois de Merkel e Sarkozy anunciarem um novo Tratado para a União Europeia, os comentadores habituais logo explicaram que finalmente estava encontrada a saída para a crise da eurozona.

Depois de Merkel e Sarkozy anunciarem um novo Tratado para a União Europeia, os comentadores habituais logo explicaram que finalmente estava encontrada a saída para a crise da eurozona. Vem aí a união orçamental e fiscal que reforça a União Europeia e salva o euro do ataque especulativo a que tem estado sujeito desde 2009. Os mercados contudo não parecem partilhar do mesmo optimismo (esse optimismo antropológico que caracteriza o europeísmo bem pensante vulgarmente publicado nos nossos jornais, outrora social democrata antes dessa corrente ideológica ser varrida eleitoralmente).

Comecemos pelo principio. Os mesmo que agora não poupam loas a um novo tratado e garantem que outro passo federalista é absolutamente urgente são os mesmos que em 2009 disseram que o Tratado de Lisboa resolvia tudo, que não haveria mais tratados por dez anos, que a União Europeia tinha a organização institucional e política adequada para os novos tempos. Isto em 2009! Credibilidade zero, autocrítica nenhuma.

Os acontecimentos do passado fim-de-semana são mera "reprise" de reformas anteriores. O novo tratado será evidentemente um calvario político de consequências imprevisiveís. Não é por o euro estar à beira do colapso que os diferentes países vão abandonar as estratégias nacionais de maximizar os ganhos individuais como em anteriores reformas constitucionais. Para mais quando em muitos países os eleitores são agora muito pouco dados a mais concessões políticas, mais transferência de soberania e mais integração (e, por isso mesmo, nada de referendos e consultas populares que o povo é burro e não sabe decidir). Não há dúvida de que qualquer solução sustentável do euro pede uma união orçamental e fiscal, mas também é um erro grave continuar a ignorar que os eleitores dos países ricos não querem nem o euro, nem mais integração (outra coisa são as elites).

A crise do euro mostrou a ficção da União Europeia. Os Estados membro não são todos iguais. As instituições europeias são absolutamente irrelevantes quando a coisa é séria. Os grandes princípios bonitos anunciados nos Tratados são letra morta quando o pragmatismo da realidade económica assusta. Manda quem paga, e quem paga é a Alemanha. Claro que está na moda insultar a senhor Merkel (por muita gente que certamente não lê a imprensa alemã e acha que um futuro governo do SPD vai permitir o regabofe do endividamento dos últimos dez anos) e o senhor Sarkozy (que coitado só pede que se mantenha a aparência de uma França influente mas que evidentemente não tem nem poder político nem económico; uma situação que não se alterará com François Hollande como Presidente por muito que digam uns senhores patuscos que falam françês). Mas este populismo encartado de análise política esquece que a Alemanha pode mandar porque tem o apoio de uma maioria dos Estados membro que são as economias potentes da União (Holanda, Escandinávia, os países do Centro e do Leste). O delírio gastador do Sul não encontra nem solidariedade nem compreensão na Europa que cresce, na Europa que trabalha, na Europa que é produtiva. E se essa Europa não amortiza o Sul é porque as suas elites entendem bem a complexidade da situação, porque fossem os eleitores a decidir, e onde já iria esta história.

Na verdade, vislumbrando para além das questões técnicas mais complexas, o problema é bem simples. Resolver a crise do euro custa 3 ou 4 billiões de euros. Vai pagar a Alemanha com os seus aliados. O que eles pedem é uma guarantia de que o Sul não voltará a fazer o mesmo. Mas o Sul não tem forma credível de assegurar semelhante promessa. Os últimos dez anos demonstraram que os eleitores no Sul gostam de quem gasta, de quem se endivida, de quem promete dinheiro fácil, de quem acha que as dividas não se pagam. O que assusta a Alemanha é ter que pagar a factura sem saber se dentro de dez anos chega outra factura pelos mesmos de sempre. Por isso mesmo, andar com a conversa das "eurobonds" como se houve em Portugal é de gente que ainda não percebeu bem o que mudou.

Pouco a pouco a senhora Merkel vai fazendo o possível para criar as condições adequadas para que a garantia de que o Sul não voltará a fazer o mesmo seja cumprida. Primeiro, vai impondo governos técnicos com gente da sua confiança. Foi na Grécia, foi em Itália. Será em Portugal e em Espanha no momento que os respectivos governos comecem a abrandar o pacote de austeridade para responder a preocupações eleitoralistas (veremos quanto tempo aguenta o nosso governo). Agora, evidentemente, para formalizar tudo isto, a Alemanha quer um novo tratado feito à imagem dos seus interesses (mesmo que isso venha a alienar o Reino Unido).

Não tenho grandes dúvidas de que o novo tratado, na generalidade, vai manter a ficção de que existe uma União a 28 (ou a 27 sem o Reino Unido), com as suas instituições e políticas autónomas. Mas, na substância, parece-me claro que o principio da subsidariedade dará lugar à regra de manda quem pode e quem pode é quem paga. O novo Tratado pode ser mais federalista, mas a federação já não é a mesma.



Professor de Direito da University of Illinois
nuno.garoupa@gmail.com
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