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12 de Setembro de 2006 às 13:59

Consciência e vergonha

O homem negro olha-me com olhos de menino, apesar dos cabelos e da barba rala, brancos, que denunciam outro somar de anos.

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Bodo Djau chegou finalmente a Lisboa depois de 30 anos de medo, no mato, por ter servido a bandeira portuguesa e testemunhado a tortura e o fuzilamento de muitos companheiros de armas.

Mais de 20 mil negros cumpriam serviço militar obrigatório nas Forças Armadas portuguesas na Guiné-Bissau, por altura da independência deste país.

Sob promessa de integração na nova sociedade aceitaram depor armas, ficar na Guiné-Bissau e contribuir para o novo país, mas a sua elite acabou fuzilada em valas comuns, num banho de sangue a que o Estado português escolheu virar a cara.

Bodo Djau é uma sombra de si próprio, 30 anos após ter sido condecorado com a Cruz de Guerra de Primeira Classe pelo Estado português.

Encontrei-o nos arredores de Bissau, com ajuda de um outro comando africano, que connosco reviu, pela primeira vez, o homem que o retirou debaixo de fogo, com uma perna destroçada por uma mina.

«Trabalhei com o branco manga de ano. Levei muita porrada no mato?» – fala, pausado, esgotado por mais uma noite passada em branco na guarda nocturna de um armazém. «Andava de noite e de dia, à chuva e ao Sol? bebi água podre no mato e agora tenho bala no corpo e nada para o tratar».

Bodo olhava-me com a timidez de quem há muito somou todas as razões para desconfiar de tudo e de todos. Perto de nós, meninos brincavam entre galinhas, à sombra das árvores, sobre o terreiro imaculamente varrido.

Há mais de um ano que aguardava visto para vir a Portugal curar as lesões de balas recebidas com a farda portuguesa. Cumprindo ordens de Lisboa.

Mostrou-me a guia comprovativa do pedido e pagamento do visto, equivalente a cinco dos salários que ganha actualmente na dureza da guarda nocturna.

Os olhos regressam-me à guia militar deste homem que serviu o meu país, quando Portugal era também Guiné. Um território que ele, tal como nós aqui, naturais da dita Metrópole, tínhamos de defender como Pátria única, em serviço militar obrigatório.

Já se esqueceram disto? Nunca o souberam? Que desculpa é essa quando mesmo depois de o saber, persiste o virar da cara?

Fui investigar o que se passava. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras dera luz verde à emissão do visto, numa questão de dias, mas o processo tropeçou depois no trânsito diplomático. Algures.

E ele, o Bodo, lá ficou no terreiro de Áfia, homem tornado sombra.

«Não se esqueça de mim quando voltar a Lisboa. Por favor!» - rogou-me ele, segurando-me as mãos e o coração. Envergonhando-me numa culpa que é também minha, cidadão de um país onde é (ou parece ser) fora de moda sentir e servir a Pátria.

Dei-lhe a minha palavra que não o esqueceria e não o fiz. Pressionada por todos os lados, a «máquina» do Estado acabaria por verter o tal visto redentor, redemindo-nos a todos desta vergonha colectiva.

Uma viagem no tempo que deixa a descoberto uma vergonha na memória onde estes homens foram bodes expiatórios dos medos e sede de vingança dos novos poderes guineenses e das conveniências políticas portuguesas.

Episódios de torturas, execuções sumárias e sepulturas em valas comuns multiplicaram-se em Canchungo, Mansoa, Cumeré, Bula e Bissorã. Mas também em Bambadinca onde Bodo Djau testemunhou um sofrimento dos seus antigos camaradas, que nos faz recuar aos campos de concentração da Alemanha nazi.

As portas metálicas do celeiro de Bambadinca, agora enferrujadas, estão cerradas com uma corrente e um cadeado calcinados, mas deixam antever, por uma frincha, a nudez do seu interior, transformado numa fornalha sufocante, pelo bater do Sol na chapa do telhado.

Bodo sobreviveu durante quase um ano naquele inferno onde muitos morreram sufocados sobre a urina e fezes de mais de 500 homens, que dali apenas iam saindo para serem executados ou sepultarem companheiros.

- Você sepultou camaradas seus militares?

- Manga (muitos)? manga? manga deles?

As palavras somem-se. Travadas num homem que foi treinado para enfrentar as maiores durezas da guerra mas não a crueldade e o abandono por quem jurou servir. E eu insisto:

- Bodo? que lhes diziam os vossos carcereiros?

- Que íamos todos morrer. Que não tínhamos salvação. Que íamos pagar por termos traído os guineenses?

O antigo comando descreve-nos, depois, como quase todos os seus companheiros de prisão foram sendo levados em grupos para um local de fuzilamentos sumários e sepultura em valas rasas, que haveria de nos mostrar mais tarde.

Em cada leva, metade dos presos transportados nas traseiras de um camião era fuzilada, servindo os restantes de coveiros. No dia seguinte, estes últimos (tendo sido testemunhas) eram os executados.

Bodo foi dos poucos, senão o único, deste grupo de Bambadinca que viveu para contar o pesadelo; quando lhe tocou a vez de ser fuzilado, ao aproximar-se do local de execuções, não tendo nada a perder, saltou do camião em andamento com os braços atados, sob tiros dos guardas.

Bodo conseguiu mais tarde fugir para o Senegal onde sobreviveria durante dois anos no mato, até regressar em desespero à tua terra natal. Tentar obter um visto para Portugal.

O tal que chegou agora, finalmente, ao fim de mais de um ano.

Para nos redimir na vergonha da memória. A todos os que as tivermos; Consciência e Vergonha.

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