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10 de Maio de 2006 às 13:59

Como evitar uma guerra

Querer evitar uma guerra pode ser dos mais nobres propósitos de uma cultura. Pode ser fundado nas mais diversas motivações, mas é sempre um projecto interessante, sobretudo quando se sabe o sofrimento que as guerras implicam.

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Querer evitar uma guerra pode ser dos mais nobres propósitos de uma cultura. Pode ser fundado nas mais diversas motivações, mas é sempre um projecto interessante, sobretudo quando se sabe o sofrimento que as guerras implicam. A questão agora é a de saber, não tanto o que nos motiva a querer evitar, mas como o fazer. Os povos que mais quiseram evitar guerras foram sempre povos guerreiros. Os outros em geral só o querem fazer quando os outros decidem por eles que vão entrar em guerra. Por isso temos de nos pôr igualmente na postura do guerreiro para saber como evitar tal drama.

Se corremos o risco de ter uma guerra na Europa não a trato aqui. Apenas gostava de enunciar algumas ideias sobre o que se diz nas esquinas sobre como evitar uma guerra.

O dito público bem pensante diz que o que evita a guerra é a cultura e o desenvolvimento. Esta ideia tem no entanto algumas fragilidades, que avanço timidamente. A primeira é o teste histórico. Assim sendo, a Grécia clássica não teria feito guerras, nem a Itália da Renascença, nem a França, nem a Alemanha, nem a Inglaterra. Dá-se o caso de a maioria dos povos eminentemente cultos na História serem povos guerreiros. A Holanda do Século de Ouro não foi só comerciante, mas armada, e não conheço povo realmente culto que não tenha feito guerra. A segunda fragilidade é estrutural. Imagine-se que somos invadidos. Teremos de pedir que não o façam à segunda-feira, altura em que os museus estão fechados, por forma a mostrá-los aos bárbaros que nos invadam. Eles ficarão humilhados com a nossa imensa cultura e ir-se-ão embora pedindo imensas desculpas, que teria sido um equívoco, que não sabiam seremos tão cultos. Seria assim? Ou é precisamente o desenvolvimento e a cultura que atiçam a cobiça dos bárbaros, como se viu em relação ao império romano, ou à Índia em relação aos mongóis, ou a Bizâncio em relação aos turcos? Povos pobres e incultos não suscitam grande cobiça, apenas ocupação. A cultura e o desenvolvimento pode, em certas circunstâncias retirar a vontade de guerra de quem tem esses atributos, mas não o faz em relação a vizinhos que não os têm.

O segundo lugar comum diz que é o conhecimento do «outro» (expressão tenaz e pirosa, se a há) que evita a guerra. Aceitemos num impulso de generosidade que um conhecimento religioso de tipo socrático ou cristão teria esse efeito. Mas, dado que este tipo de conhecimento é árduo de obter e raras vezes colectivo, parece ser um desiderato pouco eficaz. Vejamos antes o que nos diz o teste histórico. Nunca tanto a Europa soube alemão e francês como desde a segunda metade do século XIX até ao fim da II Guerra Mundial. Nessa altura alemães e franceses conheciam as respectivas culturas com uma profundidade que hoje em dia já não ocorre. Era comum o oficial alemão conhecer Pascal melhor que o francês médio. De tal forma que nos anos de 1920 os franceses, que oficialmente deram sempre uma grande importância à cultura clássica, perceberam que tinham de fazer uma colecção de textos clássicos porque até então estavam reduzidos a lê-los na versão alemã de Teubner. A deslumbrante colecção de clássicos gregos e latinos das Belles Lettres começou por este motivo. Vejamos agora o que nos diz o teste estrutural. Imagine o leitor que tem de viver anos na mesma casa que Hitler, Estaline ou Pol Pot. O seu mais profundo conhecimento das criaturas poderá humanizá-las, o que nunca é mau efeito. Mas ficará a gostar cada vez mais deles? Estará pronto o leitor a reconhecer que há culturas abomináveis, povos execrandos no seu funcionamento colectivo, ao menos como hipótese? É que este argumento parte do princípio de que todos os povos e culturas são amoráveis e que basta conhecê-los para perceber isso. Seja. Visitemos Aztecas a fazer sacrifícios humanos e vejamos como é maravilhoso assistir a corações humanos a serem retirados dos corpos ainda a palpitar. Um juízo sumário de nojo em relação ao povo pode ser apressado. Mas uma condenação da sua cultura poderá ser acto de justiça.

A terceira via é a da vontade. Desde que não tenhamos vontade não teremos guerra. Seja. Mas temos de tirar a vontade ao vizinho de no-la fazer. E se o vizinho tiver mesmo muita vontade de nos agredir? A História tem demonstrado que o que mais tira a vontade de agredir aos povos é o potencial agredido ser poderoso. Por vezes o vizinho não quer agredir porque quer deixar cair o fruto de podre, ou porque está ocupado alhures, muito raramente por atitude moral. A Idade Média deu muitos exemplos disto, tanto quanto Açoka na Índia. Mas a única garantia contra a vontade agressiva dos outros a longo prazo é estar preparado para lhe responder e ele saber desse facto.

A quarta via é do interesse. Não há guerra se não há interesse nisso. Para isso temos de diminuir o nosso interesse em fazer guerras bem como diminuir o interesse do vizinho em fazê-la. O interesse próprio em fazê-la diminui havendo outras ocupações: comércio, cultura, acção social entre outras. O interesse dos outros diminuiu criando-lhes outros interesses também (desenvolvimento, entre outros). Mas no longo prazo, nunca sabemos que interesse vai ter o vizinho, nem o podemos forçar a ter este ou outro interesse. Assim sendo, e mais uma vez, a única forma durável de diminuir o interesse do vizinho em nos agredir é o poder. O custo provável da agressão tem de ser tão elevado que demova a motivação de fazer guerra. O interesse do Mediterrâneo do século III a. C até ao I. a.C. seria o de unir-se e fazer guerra a Roma, e no entanto os principados da bacia mediterrânica fizeram guerra entre si. O interesse da Europa contra a Turquia era de unir-se e no entanto à parte Lepanto e o cerco de Viena houve sempre Crimeias que a dividiram, não fora a I Guerra Mundial por um cúmulo de circunstâncias a ter expulso de vez da Europa. As pessoas nem sempre fazem o que é de seu interesse.

A quarta via é do gosto. Há povos que têm o gosto de fazer guerra. Independentemente do interesse que nela tenham, é isso que os motiva. O romano foi assim em certa épocas, o mongol e o turco noutras. É a sua forma de vida, o que lhes dá sentido à vida. Neste caso o único instrumento eficaz tem sido o religioso. O saxão, o boémio, o petchenegue convertido ao cristianismo deu disso bons exemplos. Mesmo assim a conversão religiosa apenas orienta a longo prazo a agressividade, não a anula. E como a Europa anda coxa de religião, e apenas tem paraísos artificiais a oferecer na matéria nos últimos anos (democracia, economia de mercado) é duvidoso que este método seja eficaz. É que esses paraísos enquanto tal não são eficazes, mas a sua eficácia mesma que o é. Ter uma economia de mercado pobre e uma democracia de miseráveis motiva pouco as pessoas.

A quinta via é a do amor. Se todos nos amarmos uns aos outros as guerras acabam. O que é simpático como pensamento, mas pode-se dar o caso do vizinho não nos querer amar, o que estraga logo a festa. Além do mais qualquer pessoa razoável sabe que amar é muito cansativo, sobretudo se o sentimento se espalha por toda a humanidade. Mais uma vez o que se pede é uma conversão religiosa de toda a humanidade, o que resulta bem da música pop, mas dá poucas boas sinfonias e escassos resultados práticos.

A sexta via é simbólica. Evitar símbolos agressivos e promover os símbolos de paz pode ser eficaz. Ou seja, evitar cabeças de bárbaros cortadas em fotos e promover símbolos olímpicos, por exemplo. No entanto, ainda aqui há dois ou três problemas. Os jogos olímpicos foram patrocinados pelos nazis e por outros regimes totalitários e se a festa é mais importante que os cínicos afirmam é menos importante que os líricos desejam.

Se bem virmos restou-nos neste percurso uma palavra sólida como o aço. A longo prazo, só o poder evita a guerra. É evidente que não faz mal ser desenvolvido, culto, conhecer bem o vizinho, não ter nem vontade nem interesse em fazer guerra, disso não retirar gosto fundamental, e retirar essa vontade, interesse e gosto no vizinho. Para quem quiser amar o próximo assim o faça e que os símbolos sejam prudentes.

Mas a História várias lições nos deu. A primeira é a de que nunca se tem certeza do futuro, e por isso nunca se tem a certeza de evitar plenamente uma guerra. Por isso é prudente estar preparado para ela. Uma Europa despida de poder militar é assim uma Europa aberta ao próximo violador e, desde logo, às suas chantagens. Não é por acaso que a Turquia tem o topete de dizer que só sai de Chipre sob condição de entrar na União Europeia. Para que um país subdesenvolvido tenha este topete é que sabe que fala com fracos. E ao contrário do dito, dos fracos reza a História. Para os lamentar, deplorar e, na melhor das hipóteses, ter compaixão deles.

Não sei se estar impreparado para uma guerra aumenta as possibilidades de ela ocorrer. Apenas sei que aumenta a vontade que quem no-la quer fazer porque sabe que os custos são menores. E aumenta de certeza os nossos custos caso ela ocorra. Façamos a boda fazendo de conta que tudo está bem. No dia seguinte veremos os seus restos.

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