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Negócios negocios@negocios.pt 12 de Julho de 2002 às 17:18

Comercio livre. Que comércio livre?

As distorções comerciais criadas pela actual administração Bush podem ter graves consequências para muitos países no curto prazo e para o futuro do comércio mundial no longo prazo, especialmente para OMC.

Soumodip Sarkar,

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Se existe alguma coisa sobre a qual a maioria dos economistas estão de acordo são os benefícios do comércio livre. Actualmente, a teoria das vantagens comparativas de David Ricardo, de 1817, é uma das primeiras matérias leccionadas em qualquer curso sobre comércio. Usando esta teoria, David Ricardo demonstra que as trocas comerciais entre Portugal e a Grã-Bretanha poderiam ser mutuamente benéficas para ambas as nações, pelo que Portugal exportava vinho do Porto, onde detinha uma vantagem comparativa, e a Grã-Bretanha exportava tecidos. (É curioso que as empresas britânicas eram proprietárias do comércio de vinho do Porto em Portugal naquela época. Mas, isso é deixar que os factos se «metam no caminho» de uma boa teoria!). Uma das implicações essenciais da teoria do comércio é que se todos os países se especializarem na produção de bens nos quais detêm uma vantagem comparativa, então o bem-estar de todas as nações aumenta.

E este simples mas poderoso argumento desempenha um papel significativo nos esforços das organizações multilaterais, como a OMC (Organização Mundial do Comércio), na tentativa de convencer os países membros, em sucessivas rondas negociais, a liberalizar o comércio. A abertura dos mercados internos, a redução das barreiras comerciais, a eliminação de subsídios contribuíram para reduzir as distorções e benefiçiaram o país em causa. Pelo menos este é o «remédio» que muitos economistas, organizações multilaterais e países desenvolvidos têm tentado «receitar» aos países em desenvolvimento.

Lentamente, as barreiras ao comércio livre têm vindo a ser levantadas, não apenas nas nações industrializadas, mas também nos países em vias de desenvolvimento. O fenomenal crescimento das exportações em algumas das economias dos tigres asiáticos, nomeadamente em Hong-Kong, Singapura e Taiwan, e com menor expressão na Malásia, Tailândia e Indonésia, contribuiu para convencer os países em desenvolvimento que o comércio, especialmente através das exportações, pode desempenhar um papel importante no crescimento da economia. Actualmente a economia chinesa é impulsionada pelo fenomenal sucesso das exportações no corredor Hong-Kong – Senzhen – Guangzhou.

Ao mesmo ritmo que as taxas tarifárias (e outras barreiras não tarifárias) têm caído, o comércio mundial têm conhecido um rápido crescimento. Durante as últimas duas décadas do século XX, o comércio mundial cresceu duas vezes mais rapidamente que o «output» mundial (6% de crescimento do comércio contra um crescimento de 3% do «output» mundial). Por exemplo, na China verificou-se uma súbita transição das suas exportações, não apenas em termos absolutos, mas enquanto parte das exportações mundiais as exportações chinesas cresceram de 2,15% para 4,46% em 2000.

E agora marcha atrás ...

Se o comércio mundial cresceu rapidamente na últimas duas décadas, os Estados Unidos podem recolher a sua parte de créditos, pois desempenharam um papel fundamental ao incitarem os países abrirem os seus mercados domésticos. Em consequência, é com algum desapontamento que se observa recentemente uma inversão do curso da sua política atribuindo subsídios aos agricultores (algo que os Estados Unidos acusavam a União Europeia) e impondo unilateralmente tarifas sobre o aço. Os Estados Unidos defendem desde à muito a liberalização dos mercados, contudo actualmente introduziram distorções significativas nos mecanismos de mercado.

A «Farm Bill” promulgada a 13 de Maio de 2002 pelo Presidente Bush, iria distribuir uma estimativa de 200 mil milhões de dólares durante 10 anos, a qual incluiria novos gastos de 83 mil milhões de dólares. Tal verba seria direccionada para agricultores que produzem trigo e milho e renovada para a lã, «mohair» e mel, entre outros produtos agrícolas.

Esta lei agrícola surge dois meses antes de outra lei relativa ao livre comércio, a 5 de Março de 2002, na qual o Presidente Bush decidiu impor tarifas por um período de três anos na ordem de 8% a 30% sobre as importações de aço para os Estados Unidos. O Presidente impôs as tarifas sobre o aço com base no argumento de que estas permitiriam a recuperação dos níveis de competitividade dos produtores de aço.

Por que é que os Estados Unidos, o campeão» do comércio livre, decidiu pagar subsídios aos agricultores (aumentando o déficit orçamental, o qual este ano está estimado em mais de 100 mi milhões de dólares) e impôs tarifas que enfureceram os seus maiores parceiros negociais, como a União Europeia, o Japão, a China, a Coreia do Sul e o Brasil?

A política doméstica, «stupid»...

Tanto os subsídios como a imposição de tarifas sobre o aço aparentam ser uma descarada estratégia de recolha de votos do partido republicano, vinda de um partido que favorece o livre comércio. Os subsídios agrícolas são direccionados para agradar aos poderosos «lobbies» agrícolas dos estados do Iowa, South Dakota e Missouri, estados críticos para as eleições de Novembro deste ano. Também as tarifas sobre o aço foram direccionadas para agradar os eleitores dos estados produtores de aço da Virgínia Ocidental, Ohio e Pennsylvania, mais uma vez estados que podem assumir uma posição crucial nas eleições de Novembro.

... e as suas implicações

As distorções comerciais criadas pela actual administração Bush podem ter graves consequências para muitos países no curto prazo e para o futuro do comércio mundial no longo prazo, especialmente para OMC. Enquanto que a protecção aos produtores domésticos poderá angariar votos, na realidade são os consumidores dos Estados Unidos que subsidiam os produtores. Por exemplo, nos Estados Unidos o preço do açúcar é pelo menos duas vezes maior que o preço internacional.

O efeito mais devastador do proteccionismo do Estados Unidos consiste nos sinais errados que envia para outros países. A União Europeia, os quais possuem os seus próprios subsídios agrícolas através do PAC, terão menores incentivos para reduzir os subsídios. Os países mais pobres que começaram a reduzir as suas barreiras ao comércio vêm os Estados Unidos como um país hipócrita e estão longo de iniciar os seus próprios programas de liberalização do comércio, como foi declarado nas OMC negociações de Doha de 2001. No longo prazo, o unilateralismo dos Estados Unidos constitui um «travão» ao comércio mundial e expõe cada vez mais os Estados Unidos aos custos da hipocrisia.

Professor Associado, Dept. de Gestão de Empresas, Universidade de Évora, e Director do Centro de Estudos e Formação Avançada em Gestão – Universidade de Évora (CEFAG – UE).

Comentários para autor e editor para ssarkar@uevora.pt

Artigo publicado no Jornal de Negócios – suplemento Negócios & Estratégia

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