Opinião
Casa roubada, tijolos nas janelas ?
"Casa roubada, trancas à porta", diz o ditado popular. O comportamento humano está, de facto, cheio de exemplos deste tipo de atitude. Vivemos despreocupados, baixamos a guarda e, quando sofremos as consequências de um qualquer acontecimento...
"Casa roubada, trancas à porta", diz o ditado popular. O comportamento humano está, de facto, cheio de exemplos deste tipo de atitude. Vivemos despreocupados, baixamos a guarda e, quando sofremos as consequências de um qualquer acontecimento adoptamos, muitas vezes, atitudes opostas extremas, como se estas pudessem compensar o mal que foi feito e que não precavemos. Na verdade, em muitos casos, estas atitudes extremas não são mais do que formas de acalmarmos a nossa consciência ou de darmos aos outros a imagem de que estamos a corrigir o que estava mal. Isto é, nem sempre as "trancas à porta" tornam, realmente, a casa mais segura ou habitável. Por exemplo, e caricaturando, muitas pessoas nunca mais voltaram a comer carne de vaca depois da crise das "vacas loucas", mesmo depois de o tempo passar e de as autoridades terem apertado a vigilância sobre o problema. Mas a maior parte destas pessoas continuou a consumir despreocupadamente o frango (com nitrofuranos), o peixe (com chumbo), o porco (com dioxinas tóxicas), etc.. Outro exemplo, mais sério, é o das pessoas que, depois ganharem peso excessivo, seguem "dietas" drásticas e desequilibradas, forçando uma perda de peso que põe em risco a própria saúde (e que, muitas vezes, por isso mesmo, se torna insustentável). Ou seja, é como se, depois da casa roubada, fossem para além das "trancas à porta" e tapassem também as janelas com tijolos. Na ânsia de tornar a "casa" segura, exageram e tornam-na inabitável.
Vem esta introdução a propósito de algumas reacções à crise económica e financeira que vivemos nos últimos dois anos, em assuntos diversos e em níveis diferentes, e que correm o risco de cair neste tipo de excessos. Refiro aqui dois, a título de exemplo: (i) as novas exigências de regulação sobre o sector financeiro, e (ii) as críticas aos fundamentos da teoria e doutrina económicas "mainstream", bem como aos economistas. Qualquer destes temas mereceria uma discussão muito mais profunda. Oportunidades futuras não faltarão. Aqui, procurarei aqui apenas referir alguns pontos e ideias breves sobre cada um (embora diferentes, os dois temas têm em comum uma tendência crescente para uma desconfiança em relação ao papel que o mercado pode e deve representar no dinamismo de uma economia).
Em relação ao primeiro ponto, e no seguimento da reunião do último fim-de-semana dos Ministros das Finanças e dos Governadores dos Bancos Centrais do G20, têm vindo a lume notícias sobre um provável aperto da regulação a que os bancos estarão sujeitos, incluindo um novo reforço dos rácios de capital, maiores exigências em relação à qualidade desse capital (isto é, em relação ao tipo de instrumentos que pode ser incluindo na definição de capital e no cálculo daqueles rácios), a necessidade de reforçar o nível de provisões nas fases mais favoráveis do ciclo económico (para se ter uma maior almofada quando as coisas pioram) e a possível imposição ou aperto dos limites à expansão do endividamento das instituições (isto é, à capacidade de "alavancarem" o seu balanço). À partida, pode parecer difícil argumentar contra a bondade de uma regulação mais apertada no sector financeiro, sobretudo à saída de uma crise provocada, em parte, por tomadas de risco excessivas e por uma regulação e uma supervisão insuficientes nesse sector. E haverá, seguramente, melhorias a fazer a este respeito.
Mas é essencial que as medidas a tomar obedeçam a algum equilíbrio e que não sejam guiadas apenas por uma vontade política de mostrar à opinião pública uma severidade excessiva perante um sector que se teria "portado mal". Um aperto excessivo da regulação implica, objectivamente, uma menor rendibilidade do sector, bem como uma maior restritividade e uma menor disponibilidade no financiamento do sector à economia real (menos liquidez, uma selecção muito mais apertada dos riscos, aumento dos spreads, etc.). Em suma, uma regulação excessiva pode levar a uma diminuição do dinamismo e do bem-estar de uma economia. Estes efeitos são, aliás, o oposto do que a economia mundial precisa neste momento. E entram em contradição com os sucessivos apelos que têm sido feitos pelas autoridades (Governos e Bancos Centrais) no sentido de os Bancos expandirem já o crédito às empresas e às famílias. Aliás, é particularmente difícil conciliar este apelo com a imposição, pelas mesmas autoridades, de uma gestão do risco mais apertada, no contexto de previsíveis aumentos do desemprego e da falência de empresas (que implicam uma provável deterioração da qualidade do crédito). Assim, era desejável que estas medidas fossem tomadas de uma forma equilibrada e sem precipitações. Aplicadas demasiado cedo, as novas exigências regulatórias poderiam contribuir para asfixiar a retoma em curso, que se apresenta ainda muito vulnerável. Aliás, essa mesma preocupação levou já os principais bancos centrais a afirmar que deverão manter a actual natureza expansionista da política monetária durante um período prolongado de tempo (isto é, juros baixos e injecções de liquidez à economia). Também há riscos de algum laxismo nesta opção (por exemplo, podendo alimentar um problema de inflação no futuro), mas é a opção correcta nesta altura, de acordo com o que a economia precisa. Esperemos que a mesma opção seja seguida no que respeita à regulação dos bancos (o comunicado no G20 sugere, pelo menos, que estas medidas devem esperar por uma consolidação da retoma, o que é positivo). A regulação precisa de ser melhor direccionada e mais inteligente, não precisa de ser mais pesada. Aliás, é interessante lembrar que, aquando da crise da dívida da América Latina no início dos anos 1980, muitos bancos em diversas economias caíram, tecnicamente, numa situação de insolvência. Na altura, tempo e paciência dos reguladores e dos supervisores foram ingredientes essenciais para que o sector bancário recuperasse a solidez e para que a confiança regressasse aos mercados financeiros.
Por limitações de espaço e por respeito à paciência dos leitores, o segundo tema atrás referido - a critica ao pensamento económico "mainstream" (por assumir como base de análise a racionalidade das decisões dos agentes económicos e a sua interacção no mercado) e aos economistas (por, supostamente, não terem previsto a actual crise), terá que ser desenvolvido num próximo artigo. Como aperitivo, ficam aqui alguns dos títulos e ideias que têm sido expressos em diversos artigos ao longo dos últimos meses. A revista BusinessWeek perguntava, em Abril passado, "para que servem afinal dos economistas?". Em Julho, o Economist ilustrava o artigo "O que correu mal na Economia" com um livro de teoria económica a derreter. O prémio Nobel Paul Krugman escreveu, na semana passada, um longo artigo na revista de domingo do New York Times com o título "How Did Economists Get It So Wrong?" (como é que os economistas se enganaram tanto, ou perceberam tão pouco). Um artigo de opinião no Financial Times, em Julho, defendia que "os economistas não serviam para nada". E, recentemente, Robert Skidelsky, o biógrafo de Keynes, afirmava que os economistas não gostavam de pessoas e que não concebia ter um economista como um amigo chegado. O desafio é difícil, mas tentarei responder a estas críticas num próximo artigo.
Economista Chefe do BES e Docente Universitário
Assina esta coluna mensalmente à sexta-feira
Vem esta introdução a propósito de algumas reacções à crise económica e financeira que vivemos nos últimos dois anos, em assuntos diversos e em níveis diferentes, e que correm o risco de cair neste tipo de excessos. Refiro aqui dois, a título de exemplo: (i) as novas exigências de regulação sobre o sector financeiro, e (ii) as críticas aos fundamentos da teoria e doutrina económicas "mainstream", bem como aos economistas. Qualquer destes temas mereceria uma discussão muito mais profunda. Oportunidades futuras não faltarão. Aqui, procurarei aqui apenas referir alguns pontos e ideias breves sobre cada um (embora diferentes, os dois temas têm em comum uma tendência crescente para uma desconfiança em relação ao papel que o mercado pode e deve representar no dinamismo de uma economia).
Mas é essencial que as medidas a tomar obedeçam a algum equilíbrio e que não sejam guiadas apenas por uma vontade política de mostrar à opinião pública uma severidade excessiva perante um sector que se teria "portado mal". Um aperto excessivo da regulação implica, objectivamente, uma menor rendibilidade do sector, bem como uma maior restritividade e uma menor disponibilidade no financiamento do sector à economia real (menos liquidez, uma selecção muito mais apertada dos riscos, aumento dos spreads, etc.). Em suma, uma regulação excessiva pode levar a uma diminuição do dinamismo e do bem-estar de uma economia. Estes efeitos são, aliás, o oposto do que a economia mundial precisa neste momento. E entram em contradição com os sucessivos apelos que têm sido feitos pelas autoridades (Governos e Bancos Centrais) no sentido de os Bancos expandirem já o crédito às empresas e às famílias. Aliás, é particularmente difícil conciliar este apelo com a imposição, pelas mesmas autoridades, de uma gestão do risco mais apertada, no contexto de previsíveis aumentos do desemprego e da falência de empresas (que implicam uma provável deterioração da qualidade do crédito). Assim, era desejável que estas medidas fossem tomadas de uma forma equilibrada e sem precipitações. Aplicadas demasiado cedo, as novas exigências regulatórias poderiam contribuir para asfixiar a retoma em curso, que se apresenta ainda muito vulnerável. Aliás, essa mesma preocupação levou já os principais bancos centrais a afirmar que deverão manter a actual natureza expansionista da política monetária durante um período prolongado de tempo (isto é, juros baixos e injecções de liquidez à economia). Também há riscos de algum laxismo nesta opção (por exemplo, podendo alimentar um problema de inflação no futuro), mas é a opção correcta nesta altura, de acordo com o que a economia precisa. Esperemos que a mesma opção seja seguida no que respeita à regulação dos bancos (o comunicado no G20 sugere, pelo menos, que estas medidas devem esperar por uma consolidação da retoma, o que é positivo). A regulação precisa de ser melhor direccionada e mais inteligente, não precisa de ser mais pesada. Aliás, é interessante lembrar que, aquando da crise da dívida da América Latina no início dos anos 1980, muitos bancos em diversas economias caíram, tecnicamente, numa situação de insolvência. Na altura, tempo e paciência dos reguladores e dos supervisores foram ingredientes essenciais para que o sector bancário recuperasse a solidez e para que a confiança regressasse aos mercados financeiros.
Por limitações de espaço e por respeito à paciência dos leitores, o segundo tema atrás referido - a critica ao pensamento económico "mainstream" (por assumir como base de análise a racionalidade das decisões dos agentes económicos e a sua interacção no mercado) e aos economistas (por, supostamente, não terem previsto a actual crise), terá que ser desenvolvido num próximo artigo. Como aperitivo, ficam aqui alguns dos títulos e ideias que têm sido expressos em diversos artigos ao longo dos últimos meses. A revista BusinessWeek perguntava, em Abril passado, "para que servem afinal dos economistas?". Em Julho, o Economist ilustrava o artigo "O que correu mal na Economia" com um livro de teoria económica a derreter. O prémio Nobel Paul Krugman escreveu, na semana passada, um longo artigo na revista de domingo do New York Times com o título "How Did Economists Get It So Wrong?" (como é que os economistas se enganaram tanto, ou perceberam tão pouco). Um artigo de opinião no Financial Times, em Julho, defendia que "os economistas não serviam para nada". E, recentemente, Robert Skidelsky, o biógrafo de Keynes, afirmava que os economistas não gostavam de pessoas e que não concebia ter um economista como um amigo chegado. O desafio é difícil, mas tentarei responder a estas críticas num próximo artigo.
Economista Chefe do BES e Docente Universitário
Assina esta coluna mensalmente à sexta-feira
Mais artigos do Autor
O "mistério" da inflação desaparecida
02.08.2017
O "Acordo de Sintra"
05.07.2017
Contas públicas: "What lies beneath"
11.06.2017
A confiança em máximos de 17 anos…
10.05.2017
A "táctica do salame"
09.03.2017
2017: o que está bem e o que pode correr mal
09.02.2017