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20 de Julho de 2005 às 13:59

Bizâncio e Europa

Não é por acaso que os Estados Unidos tentam apoiar o eixo Turquia, Geórgia e países turcófonos da Ásia Central contra a união estratégica da Rússia, da Arménia e do Irão. . Não é por acaso que a Turquia também o quer. Mais medo do que da China, da Índia,

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Tenho vindo a salientar várias vezes que a discussão sobre as fronteiras da Europa resulta de mera demagogia. Só um supino ignorante ou desonesto se lembra de dizer que a Síria, a Turquia ou Marrocos fazem parte da Europa. E o facto de serem muitos a dizê-lo apenas mostra o analfabetismo e a má fé da época.

Mas é evidente que um organismo vivo não se quadra em definições. Qualquer pessoa que tenha noções elementares de lógica não ignora que desde os estóicos se sabe que a vida se descreve com tipos, e um tipo não se define: delimita-se, reconhece-se. Mas não é por isso mesmo que perde identidade ou consistência. A única diferença é que não é conceptual, mas típica.

É evidente que as fronteiras de um tipo como a Europa apresentam zonas de fluidez. Mas essas zonas nada têm a ver com afirmações demagógicas que apenas tentam apaziguar proletariados externos que a invadiram. O grande teste, a grande zona de vibração e indefinição em relação à Europa, é Bizâncio.

A questão não é meramente histórica, nenhuma questão é meramente histórica. É que Bizâncio representa o que a Europa poderia ter sido e não foi. Tanto Bizâncio como a Europa são herdeiros de um mesmo passado cristão e pagão indo-europeu. Daí que Bizâncio pudesse ser Europa. No entanto diferenciam-se. A Europa forma-se de um mito de ruptura com o Império Romano.

Bizâncio forma-se de um mito de continuidade com o mesmo. Ambos são mitos, mas ambos são mitos fundadores. Porque a ruptura com o Império romano não foi absoluta na Europa, nem a continuidade absoluta em Bizâncio.

A diferença entre as culturas nota-se sempre mais na teologia, que é campo onde o arcaísmo, ou seja, os elementos fundamentos de uma cultura estão sempre mais evidentes. A grande acusação dos ortodoxos orientais em relação ao catolicismo (e por maioria de razão, dever-se-ia dizer, ao protestantismo), foi a de evolução. Os ortodoxos consideram-se fiéis aos oito concílios ecuménicos, e os ocidentais acrescentaram dogmas e concílios ecuménicos. Um orgulha-se de evoluir, outro de preservar. A questão do filioque na teologia da Santíssima Trindade é significativa nesse aspecto.

Bizâncio é importante porque deixou herdeiros importantes. Nos Balcãs e nos países russófonos. Alguns destes países aceitaram a evolução e aproximaram-se da Europa. A Grécia, a Bulgária, em parte a Roménia. A Rússia aproxima-se da Europa quando aceita a evolução. Mas sempre que recusaram a evolução, ou melhor, o mito do novo começo, afastaram-se da Europa.

Não sendo especialista da História de Bizâncio e não tendo espaço para tal, não tem sentido relatar aqui os choques e aproximações, a relação de amor, ódio e emulação que sempre existiu entre a Europa e Constantinopla. Equívocos, mal-entendidos sempre imperaram, má fé, desconfianças. Estes tipos de relações só existem entre entidades que se sabem muito próximas geneticamente, mas muito diversas em projectos de vida.

A zona de vibração, de indefinição nas fronteiras da Europa encontra-se exactamente nos herdeiros de Bizâncio, e hoje em dia sobretudo a Rússia. É por isso um problema actual. Pondo de lado o folclore ideológico, a União Soviética repetiu os dados fundamentais da política czarista sob o ponto de vista geoestratégico. Muito do apoio ao fascismo e sobretudo ao nazismo na Europa teve o mesmo padrão que o do ódio aos bizantinos. E muito do fascínio que a União Soviética exerceu é cognato ao fascínio de Bizâncio como herdeiro do império universal. A natureza sinodal dos sovietes, a sua concepção de fratria laica como o monaquismo bizantino, as suas lutas ideológicas que geram heresias enervadas, toda a História do comunismo de inspiração soviética tem homologias com o espírito de Bizâncio.

Perante parentes tão próximos há em abstracto apenas duas soluções, ou se cortam relações ou se estreitam. A indiferença pura, a mera cordialidade é a longo prazo sempre pouco eficaz e geradora de tensões. Por outro lado, se esses parentes próximos são nossos vizinhos, não podemos deixar de ter com eles relações privilegiadas.

Esses vizinhos podem ser monstruosamente grandes como a Rússia e por isso assustar a Europa ou pelo menos os países europeus que lhes são fronteiriços. Como a Rússia podem ter um pé na imensidão da Ásia e serem simultaneamente o maior país asiático e o maior país europeu. Por isso assustam não apenas os seus vizinhos.

Mas se existem interesses estratégicos de longo prazo que são mais comuns que divergentes, e se existe uma cultura comum que foi forjada ao longo dos séculos provavelmente tem muito mais sentido fazer essa grande herdeira de Bizâncio participar no movimento europeu. A Rússia ao contrário dos outros países europeus, não tem direito simples de entrar na União Europeia. Tem um direito de opção. Pode seguir Bizâncio ou seguir a Europa. A História demonstrou que soube fazer as duas opções e de forma genial ambas.

A verdade é que a Rússia representa para a Europa a possibilidade de ter cerca de trinta milhões de quilómetros quadrados, uma população de quase um bilião de pessoas, o maior centro de génios e inteligências do mundo, aceso a matérias primas e a capacidade técnica e capital para as explorar. Um colosso três vezes maior que os Estados Unidos em território, quase quatro vezes maior em população e duas vezes maior sob o ponto de vista económico.

O projecto é faraónico, reconheço. Parece utópico, dizem os pouco ambiciosos. Mas se existe um problema de fronteiras, de delimitação da Europa, ao menos para quem gosta de respirar em grandes espaços, é este. O problema é o da relação da Europa com Bizâncio e os seus herdeiros. Não o da sua relação com os Estados Unidos ou a Turquia ou outros países não europeus. É mais uma vez evidente que quem tem um fôlego histórico de apenas cinquenta anos vê esta posição como estranha, assustadora, ou ridícula. Não está habituado a respirar na grandeza. Sente-se mais seguro no cubículo, na cela pouco meditativa em que se abandonou, voluntária ou involuntariamente.

Não é por acaso que os Estados Unidos tentam apoiar o eixo Turquia, Geórgia e países turcófonos da Ásia Central contra a união estratégica da Rússia, da Arménia e do Irão. Não é por acaso que querem que a Turquia faça parte da União Europeia.

Não é por acaso que a Turquia também o quer. Mais medo do que da China, da Índia, ou do terrorismo árabe, têm de uma grande Europa que os reduziria a segundo plano. Felizmente para eles a maioria dos europeus tem espírito de servo, pouca ambição ou vistas curtas. A possibilidade aterroriza-os, as probabilidades descansam-nos. O nosso comportamento suscita legitimamente o seu desprezo.

Enganarmo-nos persistentemente no problema significa sempre perdermos a esperança da solução. Uns têm interesse nisso (americanos, turcos), outros nem sabem reconhecer os seus próprios interesses. Mas o mundo que deixaremos aos nossos descendentes, e o mundo a que vamos já nós assistir, dependerá da capacidade de abandonarmos construções de areia para abrimos fundações mais profundas, onde o granito é sólido. Só aí poderemos fazer construções elevadas.

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