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19 de Março de 2007 às 13:59

Atrás do palco

Uma das matérias que maiores modificações sofreu nos últimos anos foi a matéria atinente às questões da justiça. Do ponto de vista da sua divulgação. O que era reservado e formal passou a ser público e informal.

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O que era de tratamento técnico e restrito passou a ser de tratamento jornalístico e, portanto, público. As regras do jogo mudaram completamente. Hoje, se a questão em apreço, num dado caso judicial, é polémica e potencialmente escandalosa, é sempre notícia. Ora, ao sê-lo, focaliza-se o tratamento noticioso no resultado. Raramente se procura o que está a montante desse resultado. E mesmo quando se faz essa pesquisa ela nunca tem o relevo que é conferido ao resultado e às vicissitudes em torno do resultado. Só se olha ao palco. Acontece que, não raramente, esse desfecho é fortemente condicionado pelo que está a montante. Desde logo, pelo que foi legislado e pelo modo como se legislou. Coisas que estão atrás do palco.

Por estes dias o PGR chamou a atenção para os perigos de um futuro Código de Processo Penal que avalia mal os efeitos que pode provocar. Desde logo, no segredo de justiça, que de monumental queijo suíço pode passar a deixar sequer de ser segredo. Passados determinados prazos, toda a gente passa a ter acesso ao processo. Arguidos, assistentes, ofendidos e "tutti quanti" acedem livremente às peças processuais. Resultado: qualquer investigação em curso vai ao charco imediatamente e naufraga irremediavelmente. Para a criminalidade organizada o paraíso está à porta. Há mais: nas alterações previstas acolhe-se que a prisão preventiva se aplique apenas a crimes praticados intencionalmente, puníveis com prisão superior a cinco anos. Resultado: os crimes punidos com pena inferior escapam à medida. Para muitos crimes de "colarinho branco" o paraíso está à distância de um passo. Mas se formos ao dia a dia, excluindo situações extremas de criminalidade organizada e violenta e situações limite de "white colour crime", o ridículo só não mata em Portugal. As coimas levantadas por excesso de velocidade são, provavelmente, inválidas em várias cidades. No Porto, na via de cintura interna (vulgo VCI), as coimas para quem desrespeitou os radares poderão ser inválidas. Por uma de duas razões ou mesmo pelas duas. Ou porque a Comissão Nacional de Protecção de Dados não foi notificada da instalação dos radares e tinha de o ser. Ou porque os municípios não têm competência para utilizar os radares e aplicar contra-ordenações rodoviárias. Porventura, pelas duas. E o que é que já aconteceu ? Repare-se nesta pérola burocrática e salvífica, provinda, ao que se sabe, da própria Comissão de Protecção de Dados: "como os radares estão a funcionar abrimos um processo de averiguações para avaliarmos que legislação se aplica". É o que se chama disparar primeiro e perguntar depois. Pelo meio, a Direcção-Geral de Viação não toma partido, dizendo que o assunto se "integra na esfera de competência exclusiva da Câmara do Porto". Esta, pelo seu lado, acha estranha a posição daquela, frisando que "a competência para o processamento e aplicação de coimas cabe à DGV". Assim vai Portugal, país onde o ridículo não só não mata como nem mossa faz.

O acto de legislar era um acto nobre. Porventura o mais nobre, sem desprimor para os actos de executar e de julgar. Era o primeiro poder de soberania. Hoje, em Portugal, legisla-se de três maneiras viciadas: sob pressão de julgamentos mediáticos, sem distância nem reflexão; sem cruzar informações com outra legislação em vigor que afecta a que se quer fazer sair; ou para legitimar depois medidas administrativas e repressivas tomadas primeiro. Legisla-se mal e tarde. É por isso que ainda há quem pense que Kafka foi o primeiro e um dos mais brilhantes juristas de que há memória.

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