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Opinião
07 de Novembro de 2008 às 13:00

Até que a morte nos separe

Matérias controversas, como a liberalização do aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, surgem, não porque a sociedade "está perdida", mas porque "está viva". As leis mudam porque, a certa altura, é pior deixar estar como está do que mudar. A nova lei do divórcio é disso exemplo.

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A nova lei acaba com a figura jurídica do divórcio litigioso, prevendo que o cônjuge que mais tenha contribuído para os encargos da família obtenha uma compensação. Entre vários críticos, há quem, como a Igreja, veja o caminho aberto para o "casa-descasa" desenfreado.

A existir um aumento na taxa de divórcios, este acontecerá apenas quando o consenso ou a culpa não são fáceis de impor. O divórcio unilateral transfere o poder de decisão sobre o futuro da relação do cônjuge que deseja a continuidade da relação para aquele que deseja a separação, redistribuindo, assim, direitos de propriedade. No entanto, Ronald Coase, Nobel da Economia, ensinou-nos que quando os custos de transacção, i.e., os custos associados a uma troca, são irrisórios, a distribuição inicial de direitos de propriedade efectuada pelo contexto jurídico é irrelevante, dado que os cônjuges podem negociar facilmente esses direitos. Ou seja, qualquer casamento ineficiente se dissolveria, independentemente da existência desta lei.

Os receios da Igreja têm sentido apenas nos casos em que os custos de transacção são elevados. Como o são em casamentos onde a violência ocupa o lugar da livre negociação e uma simples conversa pode, por vezes, resultar em homicídio ou suicídio.

Nos Estados Unidos, a introdução do divórcio unilateral foi acompanhada por um aumento, apenas temporário, da taxa de divórcio, mas também por uma grande redução da violência doméstica e da taxa de suicídios e homicídios relacionados com esta1. No entanto, a redução na violência doméstica parece ter resultado não só de um aumento dos divórcios, mas também da redistribuição de poder dentro da relação conjugal propiciada pela nova lei. Num regime consensual ou litigioso, um dos membros poderá abandonar o casamento mesmo sem a aprovação do outro, mas, não provada a culpa, não adquire o direito a voltar a casar, nem parte dos bens a que tem direito. Em geral, as vítimas de violência doméstica não recorrem ao divórcio por incapacidade emocional de provar a culpa do cônjuge em tribunal e por ser insustentável a sobrevivência se saírem da relação de mãos vazias. Assim, mesmo que as vítimas ameacem o agressor com a separação, este sabe que a ameaça não é, em geral, credível. Com o divórcio unilateral, as vítimas (ou potenciais vítimas) de violência têm agora ao seu dispor uma arma mais credível de usar.

Entre os críticos à lei, há quem busque argumentos mais rebuscados do que o possível aumento dos divórcios, mas não menos irrelevantes. O Presidente da República, por exemplo, considera que a nova lei desprotege o cônjuge que se encontra em situação mais fraca, geralmente a mulher, e presenteia-nos com um exemplo implausível e hilariante: uma situação de violência doméstica contra a mulher, onde o marido pode obter o divórcio independentemente da vontade da vítima e ainda obter uma contrapartida financeira, caso ele tenha contribuído exclusivamente para as despesas familiares.

Primeiro, os agressores não são os mais interessados em deixar um matrimónio onde exercem tanto poder. Segundo, é implausível que haja uma contrapartida financeira por parte das mulheres sem independência financeira, dado que esta é, em geral, um sinal de investimento na família, em detrimento de um investimento na carreira. As contrapartidas financeiras, previstas na lei, não são só para quem paga as contas. Terceiro, o exemplo é míope. Como referi, a nova lei equilibra poderes em relações onde existem (potenciais) agressores e poderá evitar que situações de violência doméstica apareçam de todo.

A nova lei pode até dar-nos uma "visão contabilística do matrimónio", como critica também o Presidente. Mas se, no limite, o casamento fosse um puro acto de amor, a violência não seria problema e as uniões sem contracto teriam sido sempre o modelo vigente.

1 Veja-se, por exemplo, Stevenson, B. and Wolfers, J. (2006). Bargaining in the Shadow of the Law: Divorce Laws and Family Distress. The Quartely Journal of Economics, Vol. 121, Pages 267-288

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