Opinião
O saber não ocupa lugar, mas custa
O que é benéfico para os lucros das empresas nem sempre é benéfico para a sociedade. Grande parte do conhecimento científico tem de ser gerado em total liberdade de investigação, sem a pressão do lucro, sem a encomenda de resultados numa ou noutra particular direcção.
O actual ataque à investigação científica e tecnológica é baseado em motivos economicistas que chocam pela sua superficialidade. O corte brutal nas bolsas de doutoramento e pós-doutoramento, muito para além da redução prevista no orçamento para a ciência e tecnologia, é alimentado pela ideia de que grande parte dos investigadores são meros parasitas que vivem à custa do dinheiro dos contribuintes sem qualquer ligação com o mundo empresarial e produtivo. E como o tempo das vacas gordas já era, nada mais há a fazer do que cortar o mal pela raiz.
O problema é que uma árvore sem raízes rapidamente morre. A ciência aplicada, que tem por objectivo a utilização de conhecimentos existentes tendo em vista o desenvolvimento tecnológico e a utilidade económica e social, não existe sem a ciência fundamental e básica que se destina à obtenção de conhecimentos essenciais independentemente da sua utilidade imediata. A diferença crucial entre o conhecimento científico puro e o conhecimento científico aplicado não se prende com a irrelevância de um versus a utilidade de outro, mas com o facto de o primeiro ser um bem público e o segundo susceptível de ser um bem privado. E é esta dicotomia que justifica que a produção e financiamento da investigação científica sejam feitas quer pelo sector privado, quer pelo estado.
As empresas baseiam a decisão de investir em produção de conhecimento numa análise custo-benefício. O problema é que o conhecimento científico mais básico gera benefícios que não se restringem apenas a quem contribuiu quer financeiramente, quer intelectualmente para a sua produção. Estas externalidades positivas são ignoradas pelas empresas. Mais, a partir do momento em que o conhecimento está disponível, o custo de disseminação é muito baixo, o que sendo positivo para a sociedade, é negativo para os dividendos empresariais. Por último, num mercado competitivo, a luta pela sobrevivência depende muitas vezes de resultados imediatos.
Mas apesar dos benefícios imensuráveis do conhecimento científico, estes tipicamente não se revelam no curto-prazo. Hoje ninguém dá por desperdiçados os cerca de 50 anos que passaram entre a descoberta teórica de Albert Einstein sobre emissão estimulada e a invenção do laser que revolucionou a medicina, a metalurgia, entre outros sectores. É apenas um exemplo de entre inúmeros exemplos na história da ciência. Na presença de externalidades positivas, os benefícios marginais da produção de conhecimento científico são menores dos que os benefícios sociais. Se a produção desse conhecimento estiver apenas dependente das empresas, o nível produzido, associado ao equilíbrio de mercado, será inferior ao nível socialmente desejado.
E não é apenas uma questão de quantidade mas também de qualidade. As empresas vivem na "ditadura dos mercados". E o que é benéfico para os lucros das empresas nem sempre é benéfico para a sociedade. Grande parte do conhecimento científico tem de ser gerado em total liberdade de investigação, sem a pressão do lucro, sem a encomenda de resultados numa ou noutra particular direcção. Veja-se por exemplo, o que acontece na indústria farmacêutica onde a investigação a determinados medicamentos nem sempre é feita de forma isenta, produzindo-se resultados que sobreestimam a eficácia de alguns medicamentos subestimando os efeitos colaterais. Mais, em muitos casos os laboratórios farmacêuticos privilegiam uma investigação dirigida a medicamentos que potenciam a cronicidade de algumas doenças mortais em vez de uma investigação que poderá conduzir à descoberta da cura dessas doenças.
Dadas as falhas de mercado inerentes à produção de conhecimento científico puro e a sua inegável importância para o desenvolvimento e bem-estar social, o financiamento através de bolsas individuais e para projectos é essencial, sendo os cortes preocupantes e um retrocesso na produção científica com consequências futuras presentemente incalculáveis. O governo aponta, porém, uma mudança de modelo de financiamento com enfoque num 'conhecimento lucrativo'. Este conhecimento, em conjunto com o conhecimento puro, faz todo o sentido em ser fomentado. No entanto, não faz sentido algum culpar os investigadores pela fraca produção de conhecimento aplicado ao mundo empresarial. Não são os investigadores que "vivem no conforto de estar longe das empresas e da vida real" mas sim a maioria das empresas que não consegue viver no desconforto de investir em investigação e desenvolvimento. Apesar do investimento empresarial em I&D ter crescido na última década, das cerca de 400 mil empresas do universo nacional, apenas cerca de 3 mil investe em I&D.
É certo que os riscos associados a este investimento e fraca capacidade financeira de muitas empresas são obstáculos consideráveis. No entanto, vêm a ser diminuídos com programas de comparticipação financeira. O obstáculo mais difícil de ultrapassar parece ser este: falta de visão e capacidade de gestão para pensar a empresa de uma forma estratégica. Há que identificar as necessidades de I&D, criar unidades de investigação, recrutar investigadores, monitorizar e avaliar o desenvolvimento. Quanto à importante e tão ambicionada cooperação entre empresas e o meio académico, o grande obstáculo, é sem dúvida, o não alinhamento de incentivos dos empresários, os quais pretendem um conhecimento privado e lucrativo e de retorno no curto-prazo, com os incentivos dos académicos, os quais privilegiam um conhecimento público e de retorno menos imediato. A única forma de alinhar incentivos é, pois, criar incentivos para ambos. Por exemplo, projectos que não se foquem meramente na comercialização da tecnologia, mas que permitam, partilhar patentes e criar conhecimento mais fundamental que possa ser publicado em revistas científicas.
Neste "novo" modelo de produção científica, há que "agradar a gregos e a troianos". Há que valorizar o conhecimento científico em todas as suas vertentes. Em grande parte, esta crise na ciência deve-se também a uma grande incapacidade do governo em comunicar, e à sua insensatez. Não é classificando de úteis os investigadores cujo trabalho se dirige ao mundo empresarial e de inúteis todos os outros, que se alinham incentivos. Ataques e argumentos demagógicos não têm qualquer sentido. São burrice. Pior, são o primeiro passo para que a tão desejada interacção empresa-academia, falhe.
Economista