Opinião
Amnésia eleitoral
O ministro fuzilou-nos com os olhos e explicou-nos que não passávamos todos de marionetas e cachorros a soldo do grande capital e de Tony Blair. Ao fim de 16 anos a cobrir guerras, negociações de paz e os mais diversos eventos em África achei que nem o co
Maleka correu para os jornalistas, resguardados pelo muro do gás lacrimogénio, e gritou ao Jeff (meu repórter de imagem): – «Filma tudo? mostra ao Mundo a nossa democracia, porque sem imagem ninguém vai acreditar».
Jeff «filmou tudo». E nós mostrámos depois a polícia e os militares a desancarem os homens e mulheres que desesperavam contra o encerramento forçado da Assembleia de voto em Chitunguiza, a maior cidade negra do Zimbabué, onde se projectava uma vitória massiva da oposição.
Durante três dias e três noites, centenas de milhares de negros esperaram paciente e pacificamente pela sua vez de votar, apesar de a polícia ter separado homens e mulheres para filas opostas.
Tal como Hitler utilizou o racismo anti-semita como elemento catalizador do regime nazi, Robert Mugabe elegeu os brancos, como o inimigo a abater e a pilhagem dos respectivos bens como a auto-estrada de suposto acesso rápido ao conforto material para os milhões de negros zimbabueanos.
Com a insustentabilidade da estratégia populista, que reduziu à miséria o antigo celeiro da subregião, estenderam-se as raízes da oposição e os braços da repressão.
As projecções indicavam que a administração zimbabueana sofreria uma derrota massiva nos centros urbanos e perderia também as zonas rurais, a menos que algo de drástico fosse feito, mas a ZANU-PF (partido no poder no Zimbabué) não ia capitular assim, tão linearmente, após ter conquistado a ferro-e-fogo à coroa britânica.
E o que veio a seguir, ainda hoje trava a realização da IIª Cimeira Europa-África em Lisboa.
De um lado, os países nórdicos e Londres insistem que tal encontro só poderá ocorrer sem a participação de um líder reconduzido fraudulentamente e que, não hesitou em cometer os mais diversos arbítrios e violações para se agarrar ao poder.
Do outro, a África rejeita em bloco a exclusão de um dos seus, numa solidariedade entre antigos companheiros de trincheira de luta-anti-colonial, onde se cruzam ainda braços de racismo negro, naquela máxima de que tudo o que o branco sofra só peca por defeito.
Quando o dia chegou, a festa das eleições presidenciais zimbabueanas quase replicava a da primeira vez em que todas as raças votaram na África do Sul, sentando na chefia do Estado um tal de Nelson Mandela.
Só que essa foi, talvez, a única semelhança entre as duas; a ilusão de semelhança.
Nas primeiras eleições multirraciais sul-africanas, o partido no poder (de minoria branca) e a oposição esgotaram todos os recursos para garantir transparência e igualdade de oportunidades a todas as partes envolvidas na disputa do poder.
No país vizinho, só o partido no poder teve acesso aos órgão de comunicação social públicos, a administração foi reescrevendo em seu proveito a lei eleitoral até às vésperas do exercício, os cadernos eleitorais nunca chegaram a ser publicados e, nem por isso, verificadas as exclusões de milhares de pessoas que se sabiam apoiantes da oposição.
A uma semana das eleições, a comissão eleitoral obrigou «todos os partidos» concorrentes a publicarem os nomes completes, moradas e contactos dos respectivos candidatos e observadores em assembleias de voto. Sem surpresa para a oposição, centenas de observadores seus desapareceram até hoje? e a contagem dos votos que deu a «vitória» ao partido no poder e reconduziu Mugabe foi «observada» apenas pelos seus homens na maioria das assembleias.
Nessa noite, o antigo ministro da Informação, Jonathan Moyo, convocou os poucos jornalistas estrangeiros autorizados a cobrir as eleições para uma descompostura vestida de conferência de imprensa, onde lhe perguntámos como era possível ter acontecido o que testemunháramos e onde pensava Mugabe que poderia chegar assim.
O ministro fuzilou-nos com os olhos e explicou-nos que não passávamos todos de marionetas e cachorros a soldo do grande capital e de Tony Blair. Ao fim de 16 anos a cobrir guerras, negociações de paz e os mais diversos eventos em África achei que nem o continente nem eu tínhamos de dar mais para aquele tipo de peditório.
Disse ao «meu» repórter de imagem para desmontar o tripé da câmara e saímos da sala, com um duplo nó no estômago; de tristeza pelo cenário de miséria, fome e sofrimento ali configurados (e que o tempo confirmaria).
E de medo, que as conveniências políticas (ou económicas), de uns e de outros – africanos, europeus ou americanos – reabilitassem por amnésia colectiva, aqueles que, um dia, se travestiram de parte da solução, a origem do problema.