Opinião
Acontece!
Há sempre boas razões para não se cumprir uma lei. E nós, portugueses, temos fama e proveito dessa arte de fugir às regras mantendo a consciência tranquila. Celeste Cardona deu ontem um exemplo disso. Um péssimo exemplo, por vir de quem vem.
No Parlamento, a ministra da Justiça justificou que o problema fiscal no seu Ministério só surgiu porque a sua grande preocupação foi garantir a manutenção dos postos de trabalho daqueles quase 600 funcionários judiciais.
E para isso foi necessário cometer “erros de procedimento administrativo”, que a ministra admite com notável à-vontade: “Acontece!”, como disse.
Cardona nem sequer consegue ser inovadora na argumentação. O empresário João Cebola, que esteve detido na década de 90 por não ter entregue montantes de IVA, IRS e Segurança Social retidos na Oliva, justificou- se da mesma forma. E Jacinta Ricardo, ex-presidente da Câmara do Montijo, foi condenada por utilizar dinheiro do IRS para pagar ordenados de meses seguintes, enquanto não chegavam as transferências da administração central. Tudo boas intenções sociais, sem dúvida. Mas ilegais, como decidiram os tribunais.
Diz a ministra que no seu caso concreto não há ilegalidade, porque “o dinheiro está retido no Estado e é do Estado”. A governante desenvolve uma estranha teoria sobre “gavetas”, de onde o dinheiro sai e entra. Cardona não vê diferenças entre montantes depositados à ordem do Ministério da Justiça ou entregues à Caixa Geral de Aposentações. Desde que a “gaveta” seja do Estado, está tudo bem.
Mas não está. Mais uma vez, há regras que a ministra ignora. E não se matam assim um Plano Oficial de Contabilidade Pública e centenas de leis, regulamentos, despachos e afins que tentam meter alguma ordem e transparência na gestão e circulação dos dinheiros públicos.
A ministra sabe que as regras das finanças públicas são uma coisa mais complexa do que uma caixa de sapatos para onde se vão atirando as receitas dos impostos e donde se vão servindo os vários organismos públicos.
Este desprezo instrumental pelas regras e pela lisura dos actos administrativos explica estas coisas de que se tem falado. E, suspeita-se, há-de vir a explicar muitas mais. Como os novos casos que agora são revelados, de institutos que não entregam à CGA as contribuições a que estão obrigadas enquanto entidade patronal.
Aqui não há a gravidade de estarmos perante verbas descontadas aos trabalhadores. Nem há processos sinuosos em nome da manutenção de postos de trabalho.
Há, simplesmente, uma coisa que se chama aperto orçamental. E quando o dinheiro não chega para tudo o que fazem algumas entidades do Estado? Deixam de pagar aos regimes de previdência. Afinal não é isso que fazem largos milhares de empresas neste país que estão, e bem, a contas com o fisco?
São estes exemplos magníficos, vindos do núcleo duro do Governo, que transformam qualquer discurso oficial de combate à evasão fiscal numa peça de “stand up comedy”. E que nos lembram que os Governos agem como se estivessem acima, abaixo ou ao lado da lei. Mas fora dela, certamente.