Opinião
A revolta da escumalha
Só a entropia estancará os desacatos. Ou dito de outra forma. Não será a polícia de choque que porá fim à insurreição. Mais uma vez a França está no centro de uma agitação social de tipo novo.
Foi assim com os grandes acontecimentos, como a Comuna de Paris ou o Maio de 68, e agora também com esta pequena revolta da escumalha, cujo alcance é ainda imprevisível, mas não deixará, tal como nos outros casos, de provocar profundas alterações sociais e políticas. Sendo mais do que certo que essas alterações irão no sentido do reforço policial, das leis discricionárias e de um urbanismo ainda mais concentracionário. Ou seja, a velha receita repressiva que mais não faz do que adiar a próxima crise.
De qualquer forma enquanto a direita já delira e vê a mão de Bin Laden a atirar cocktails molotov em Paris, a generalidade da esquerda mais não consegue do que oferecer as mesmas políticas sociais rudimentares, isto é, precisamente aquelas que conduziram milhões de pessoas para guetos com bancos de jardim e umas quantas senhas de sobrevivência. A integração é aliás invariavelmente sinónimo de rendimento mínimo, mesmo se garantido.
Daí que por estes dias chovam de todos os lados as análises sobre as causas e até já algumas receitas para as superar, numa amálgama de questões importantes com outras menores, mas sem que se aborde o essencial do problema. Isto é, o modelo de sociedade em que vivemos. Pois é ele, mais do que os pequenos detalhes da construção política conjuntural, que está em causa quando milhares de jovens em centenas de localidades distintas saem para a rua e tudo rebentam à sua passagem. Reduzir isto a simples actos criminosos, que efectivamente o são face à lei vigente, nada elucida.
Assim, não pretendendo alimentar o debate das causas parcelares e das soluções de momento, gostaria apenas de enumerar três ideias simples que estes eventos me suscitam.
Desde logo a questão da liderança da revolta. O poder político e o económico que se organizam em fortes hierarquias, têm muita dificuldade em perceber os mecanismos da auto-organização e das dinâmicas que emergem de baixo. Pois é evidente que os tumultos dos últimos dias descrevem no terreno social aquilo que a ciência apelida de teoria do caos ou da complexidade. Um pequeno gesto num lugar desencadeia múltiplos gestos similares noutros lugares, sem qualquer relação directa entre si e tão-só por via de uma contaminação indirecta e difusa. É por isso patético assistir ao desespero de policias, políticos e jornalistas na sua busca inglória de chefes e cabecilhas lá onde de todo eles não existem. De tal forma insistente que sempre surgirá alguém que se preste a esse papel, mesmo sem nenhuma autoridade na matéria e nenhum poder efectivo quanto a poder servir como real interlocutor de um processo que não está nas suas mãos. Só a entropia estancará os desacatos. Ou dito de outra forma. Não será a polícia de choque que porá fim à insurreição. Será o cansaço.
Depois a questão das soluções. Também aqui se assiste a um claro fracasso do modelo mental do poder reinante, pois mais do que soluções seria preciso primeiro perceber o problema. Em ciência, natural ou social, nada se pode resolver sem primeiro definir com rigor o que está de facto em causa. Ora, como se vê, ninguém compreende como é possível que de repente surjam tantos focos de instabilidade, simultaneamente em tantos lugares e a maioria deles sem qualquer ligação, étnica, religiosa ou cultural, entre si. Nem todos os jovens que incendeiam carros e partem montras, são de origem muçulmana, africana ou sequer emigrantes. E nem todos são jovens. Trata-se de uma acção desconcertada, disseminada e cujo único fio comum é um evidente desprezo pela sociedade contemporânea. Ora é esse desprezo pelo «nosso» mundo que custa a aceitar. Afinal em todos os anúncios as pessoas estão sempre a rir e parecem ser felizes.
E por fim a questão da violência. Sempre se pensou a violência como um recurso da negociação ideológica ou política. Os estados usam a violência, interna ou através de guerras de agressão e ocupação, como um mecanismo excelente de negociação política, conquista territorial ou disputa de poderes. Daí a dificuldade que têm em perceber a violência sem objectivo. A incapacidade de gerar uma crítica social racional, aquela que foi praticada por partidos, sindicatos e movimentos ideológicos no passado, ou seja, o desaparecimento de uma verdadeira oposição social e política, resultou nesta deriva irracional que hoje conhecemos nos actos de muito terrorismo e agora nestas acções aleatórias de pura sabotagem do espaço urbano.
Existem hoje condições sociais tão empobrecidas que nem sequer têm meios para racionalizar a sua revolta. É delas que nasce a maior violência sem causa nem objectivo. Nenhum argumento político, social ou cultural poderá apaziguar tais impulsos destruidores. Só a mudança das condições de vida lhes poderá trazer algum consolo.