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A pobre tocha

Por estes dias, bandos de jornalistas, fotógrafos e operadores de televisão afadigam-se a correr atrás de uma tocha. É que o exercício promete oferecer tudo aquilo de que se fazem os noticiários, ou seja, violência, espectáculo e palhaçada. Como se sabe e

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Chegada a Paris, oriunda de vários lugares dispersos, segue para S. Francisco, depois para Buenos Aires, daí vai para Dar es Salaam e por aí fora, saltitando países e continentes de forma bastante aleatória e planificação absurda. Noutros tempos foi levada a pé, em correrias triunfais e cabelos ao vento, mas hoje, sinal da era moderna, viaja a maior parte do tempo de avião.

Mesmo assim e porque é da natureza da coisa tem de fazer algumas aparições públicas em pequenas corridas para media ver. Ora o Mundo é cada vez mais instável e perigoso. Pois acontece que brigadas de desordeiros, apoiantes da causa tibetana ou simplesmente com gosto pela barafunda, prometem não deixar a pobre tocha em paz. Julgo mesmo saber que Pequim já encomendou várias réplicas, pois é mais do que provável que algumas fiquem pelo caminho e apareçam mais tarde a decorar alguma sede subversiva ou, ainda mais certo, à venda no eBay, o “site” de leilões heterodoxos da Internet. De qualquer modo, é absolutamente certo de que a tocha não terá descanso. Atacada, fustigada com água, cuspo e cerveja, vilipendiada com os mais irracionais impropérios, a tocha, símbolo do desportivismo olímpico e da unidade dos povos, atravessa as ruas em fugazes aparições protegida pela polícia de choque, bastões, gás lacrimogéneo, mas não canhões de água por evidente razão. Aliás, o maior perigo que corre, esse terrível recurso de qualquer Bin Laden anti-tocha, é o extintor, arma de destruição massiva da tocha ao alcance de qualquer um.

A causa de tanto bulício é o Tibete. Os monges, por doutrina pacíficos, decidiram revoltar-se no momento mais útil. Afinal, tanta meditação havia de produzir algum resultado e a organização dos Jogos Olímpicos são um acontecimento muito importante para a China. O império tem mais ambição do que vender “t-shirts” a um euro. A velha política do fechamento tem vindo a ser substituída por uma abertura sobretudo económica, de tal modo pujante que já ameaça o outro grande império concorrente: o americano. A China vende mais barato e compra mais caro, o que gera grandes perturbações no mercado. Ora essa abertura e esse vigor na economia não podia deixar de aspirar a uma tradução na imagem. A imagem, o embrulho, é agora parte essencial de qualquer produto ou negócio.

O embrulho aí está. Imenso, pujante, inovador, na escala e na arquitectura dos Jogos Olímpicos de Pequim. Assim, não é preciso ser monge tibetano para se perceber que estragar esta festa dói muito aos chineses e não se podendo atacar as deslumbrantes construções, ataca-se a pobre tocha. Dói na mesma.

A China, sempre recatada e paciente, vê-se assim de súbito mergulhada na complexidade de um mundo que nenhum controlo, nenhuma ditadura, por mais férrea e determinada que seja, consegue domesticar. Haverá sempre gente que prefere viver no atraso, mas em liberdade, do que no progresso, mas em prisão.

A grande questão que a pobre tocha levanta é mesmo essa. É uma evidência que os tibetanos têm mais futuro com os chineses, do que com o Dalai Lama. Os monges representam um tradicionalismo arcaico, uma sociedade medieval, a penúria económica e cultural. Nas suas mãos, o Tibete foi um estado teocrático, miserável, que nunca prestou a mínima atenção ao bem-estar da população. A crença pode alimentar muito o espírito, mas não engorda o corpo. A reintegração na China introduziu escolas e hospitais e alguma melhoria das condições de existência. A mortalidade infantil, sempre um dado significativo em termos de capacidade de organização de uma sociedade, baixou de 40% à data da invasão para os 0,6% de hoje. A esperança de vida passou dos 35 para os 65 anos. Mas esse bem veio acompanhado da brutalidade, da falta de liberdade e acima de tudo de uma destruição sistemática da sociedade monástica. Os monges e seus admiradores obviamente não gostam.

Para complicar ainda mais as coisas, sucede que no Ocidente o que não falta são multidões de admiradores de monges. Tão giros naquelas vestimentas que não passam de moda e nos seus insondáveis salamaleques. O Dalai Lama, esse, é uma estrela “rock”. Sempre que aparece causa histeria e adoração. É bom não esquecer que ele se apresenta como uma reincarnação com mais de seis séculos. Feito notável que compete com vantagem com as atribuladas vidas depois da morte de tantas religiões. Assim, estrelas de cinema, artistas, políticos, gente séria, fútil ou simplesmente confusa são muitos os que lhe prestam vassalagem e nisso vêem uma oportunidade de redenção ou pelo menos de aparecer na televisão.

Nesta causa tibetana junta-se muita coisa. O tédio pela vida moderna, com o seu “stress” urbano e reducionismo materialista. O mito “hippy” que excita ainda muito velho engravatado e tanto jovem descabelado. A atracção pelo diferente. O repúdio por qualquer forma de ditadura, a começar pela chinesa. A crença. O gozo de ir para a rua protestar, contra qualquer coisa. A má consciência ocidental por tanta cultura primitiva destruída. Enfim, o complexo Mundo em que vivemos. Dificilmente a pobre tocha escapará imune a tudo isto.

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