Opinião
A festa andrajosa
Manuel Maria Carrilho pagou caro a desestruturada campanha, a insolência pueril, o enfatuamento do discurso e, até, a utilização de Bárbara Guimarães em campanha. Porém, foi miserável o que se escreveu e disse da mulher do candidato.
Os sátrapas pincharam para fora. Está vazia a gamela? É o que há. Vamos ferver o osso da pobreza, que é, desta vez, alegremente nossa? É que a mesa corrida já está posta. Alexandre O’Neill
As eleições de domingo estabeleceram uma pequena recomposição da Direita no espaço político, embora a grande surpresa tivesse sido a ascensão do PCP. Não tenhamos dúvidas: a vitória do PSD não é tão significativa quanto se pensava, nem a derrota do PS tão pesada como era previsível.
Mas tudo isto surge como uma festa andrajosa de quem já não encontra lugar para atenuar os desesperos. Note-se que, em Lisboa, os dois melhores candidatos, Ruben de Carvalho e Maria José Nogueira Pinto, não obtiveram, na realidade, os resultados que os seus talentos exigiriam. Carmona Rodrigues, corresponsável pela desfiguração da cidade e pela mais leviana das administrações que Lisboa já teve, fez jus à tese de que o crime compensa. Como já poucos lisboetas vivem no berço que os embalou, há quem diga que a vitória de Carmona constituiu a vingança dos adventícios.
Manuel Maria Carrilho pagou caro a desestruturada campanha, a insolência pueril, o enfatuamento do discurso e, até, a utilização de Bárbara Guimarães em campanha. Porém, foi miserável o que se escreveu e disse da mulher do candidato. O decoro e a gentileza foram espezinhados por uma Imprensa chocarreira e de péssima gramática.
A Direita recebeu Lisboa numa bandeja. Não sei se a bandeja é doirada, prateada ou enferrujada. Sei que o não entendimento das forças de Esquerda permitiu a ascensão de uma anomalia que a razão não explica e que a decência repudia. O Bloco está cada vez mais semelhante a outro qualquer partido do «sistema», com a agravante de ser um saco de gatos, desprovido de ideologia, impelido pelo ratio de diversos humores, e com contradições e desentendimentos que já saltam a público. O CDS está exposto na melancolia de funeral do seu dirigente máximo. Pesado, sombrio e trágico, Ribeiro e Castro parece a alegria dos cemitérios. E a declaração que fez, sobre a «subida» do seu partido, devido às «coligações», foi a voz de um sonâmbulo dirigida não se sabe muito bem a quem.
Creio residir no mérito de Jerónimo de Sousa o excelente resultado do PCP. Mas não só. A campanha comunista dirigiu-se, sem uma polegada de desvio programático e, sobretudo, sem demagogia, às urgências e às necessidades prementes dos portugueses mais desfavorecidos. A verdade é que esta larga camada da população não tem quem a defenda, e encontra nos comunistas um traço de união e uma acenada fraternidade. Repara-se que o vocábulo «trabalhador» foi abolido do léxico político de todos os partidos - excepção feita ao PCP. E o PS trocou-o pela expressão «classe média».
As extremas dificuldades que a Esquerda manifesta em entender-se resultam de fenómenos amiúde sombrios. As ligações morganáticas que o PCP tem feito com a Direita são tristemente exemplares. Os casos do Porto e de Sintra chegam a bradar aos céus. Há outros. Os desencontros entre projecto, ideologia e «pragmatismo» têm servido para muita coisa e dado origem a inquietantes demonstrações de populismo saloio. E as «explicações» surgem como remendos mal cerzidos. Felgueiras, Gondomar, Oeiras marcam circunstâncias extravagantes no mapa político: servem para exautorar dirigentes partidários, para impor o recurso extremo à manipulação, e para transformar a Justiça na máscara hedionda de uma representação facilmente manobrável.
Nada destes movimentos eleitorais vai modificar, sequer alterar, a natureza intrínseca das coisas e dos problemas. José Sócrates fê-lo notar. As decisões que tomou serão cumpridas integralmente. Significa que as convulsões na sociedade portuguesa vão prosseguir, em nome de «reformas» unilaterais. Logo-assim, Luís Marques Mendes sublinhou que a sua «vitória» não vai obstar ao programa governamental, o qual, na essência, suscita o seu entusiástico acordo.
Nada de bom nos aguarda. E é pena que a cegueira de uns corresponda à indiferença suicida de numerosos.
APOSTILA - Vale a pena frequentar o número hors-série do «Magazine Littéraire» sobre «Les écrivains et la Mélancolie - Mal de vivre, spleen et dépression d’Homère à Philip Roth». Um estudo, constituído por numerosos textos, absolutamente indispensável. Não é, apenas, a análise literária de um «sentimento»; sim o exame das épocas e das angústias por ela suscitadas. E, uma vez ainda, a literatura como espelho que se passa pelo caminho - como ensinou Stendhal.