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A fábrica do Mundo

São mil e trezentos milhões de almas – o dobro das populações somadas dos Estados Unidos e da União Europeia! – dispostas a trabalhar onze horas por dia, a viver em dormitórios industriais e a ganhar setenta euros por mês.

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Há uma dezena de anos, quando o mundo económico global vivia na espuma da sua juvenilidade, Fernando Guedes, o patrão da Sogrape, dizia-me que o seu maior desejo era que cada chinês consumisse uma garrafa de Mateus Rosé por cada ciclo astrológico (de dez anos).

Ele, líder mundial dos vinhos rosados, tinha sabido construir uma insígnia à custa de engenho, arte e fortuna. Recordo-me das suas reacções vibrantes ao mais leve argumento de falta de qualidade do produto-estrela, do seu orgulho pela excelência do processo de fabrico e pela notoriedade da marca.

Pergunto-me hoje que boa razão o impedirá de deslocalizar a produção para a China, mantendo a qualidade-padrão do produto e reduzindo drasticamente o custo dos factores, agora que o Império do Meio aprendeu a plantar vinha e a apreciar vinho.

Mais do que o Japão dos anos sessenta, a China do novo milénio apresenta vantagens irresistíveis para os agentes económicos internacionais.

A primeira, verdadeiramente esmagadora, chama-se mão-de-obra. São mil e trezentos milhões de almas - o dobro das populações somadas dos Estados Unidos e da União Europeia! – dispostas a trabalhar onze horas por dia, a viver em dormitórios industriais e a ganhar setenta euros por mês.

Estas condições, ultra-precárias aos nossos olhos europeus, são todavia um luxo quando comparadas com as das populações rurais, constrangidas a rendimentos médios na ordem dos 25 euros mensais.

Perante este enorme exército industrial de reserva (mal imaginaria Marx que o seu conceito haveria de encontrar uma perfeita tradução na China comunista), a folga é imensa e estender-se-á por um período temporal significativo.

Ao mesmo tempo, esses mil e trezentos milhões de chineses dispostos a trabalhar de sol a sol constituem o mercado mais atractivo do planeta, um mercado sedento de consumo e de acesso aos bens e comodidades do mundo ocidental.

Por isso, o tom dominante no último encontro de Davos foi o da confiança no rumo da economia chinesa, em contraste com o pessimismo de alguns analistas e os receios de um sobre-aquecimento conducente a uma espiral inflacionária, seguida de uma crise financeira de consequências imprevisíveis.

Mas como duvidar da pujança de uma economia que, em 2003, cresceu 9,1 por cento e viu a taxa de inflação situar-se pouco acima dos três?

Como duvidar do maior mercado mundial de telemóveis, do país onde as vendas de automóveis mais crescem e onde se consome um quarto da produção mundial de aço, um terço da de petróleo e metade da de cimento?

Compreende-se, pois, o quase entusiasmo do mundo empresarial pelo Império do Meio. Em Davos, a frase mais reveladora do actual estado de espírito face à China foi proferida por Carlos Ghosn, presidente da Nissan: “Quem não souber gerir as operações na China, não ganha dinheiro. Mas nesse caso, também não ganhará em mais nenhum lado”.

Por isso todos os players globais lá estão instalados, beneficiando do duplo efeito do baixo custo de factores e do extraordinário potencial do mercado interno.

As incertezas sobre a sustentabilidade do sistema político, o futuro do yuan ou o ritmo da inflação não parecem, para já, assustar os investidores ocidentais.

Nos próximos vinte anos, se não ocorrer um colapso financeiro ou uma crise política profunda, a China continuará a deter vantagens inigualáveis. Será preciso o espaço de uma geração para que a actual bolha pare de crescer, à medida que o nível médio de rendimentos for atingindo patamares próximos dos do mundo desenvolvido.

Enquanto isso, a Ocidente, temos um problema. Um problema que se fará sentir de modo especialmente agudo nos países, como Portugal, onde a história industrial produziu um tecido frágil e desqualificado, falho de factores dinâmicos de competitividade e de confiança no futuro.

É por isso que não vale pena insistirem em modelos de competitividade pura e dura, à custa do embaratecimento do custo dos factores – sobretudo a mão-de-obra – porque os chineses são pura e simplesmente imbatíveis nesse terreno.

E quando deixarem de o ser, outros tigres, que não nós, se perfilarão no horizonte.

Não estou certo de que seremos capazes de encontrar um caminho de desenvolvimento económico sustentado e próspero, apesar da luz da Estratégia de Lisboa (que o Governo português se envergonha de pronunciar, vá-se lá saber porquê). Mas estou certo dos caminhos a evitar.

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