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A destruição do legado cultural

Que nos resta do que este Governo vai deixando? Que país imponderável, que sociedade vai sobrar de uma identidade construída ao longo de séculos penosos? As interrogações podem possuir, no bojo, algo de dramático, mas a verdade é que vivemos tempos dramát

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A servil obediência dos Governos de Portugal aos ditames dos dirigentes da União Europeia atinge as raias do inverosímil, Há anos, numa entrevista publicada na revista da Faculdade de Letras de Lisboa, o escritor alemão Günter Grass, perguntava como é que aceitávamos a destruição das laranjas do Algarve "das melhores do mundo", acentuava, para obedecer à volumetria do fruto imposta por Bruxelas.

A perplexidade de Grass não é infantil nem frívola e pode servir de metáfora àquilo que vamos admitindo, sem a menor das resistências. A servidão não é de agora: vem de Governos anteriores. O que não é impeditivo de se criticar a ausência de princípios (digamos "patrióticos" para facilitar) da classe dirigente, no que respeita às especificidades de uma cultura e às características de um povo e de uma nação.

As obediências à União Europeia traduzem-se numa subordinação total ao império do neoliberalismo. Não há que fugir disto. Eis porque a União Europeia é, cada vez, mais um artifício. As desigualdades acentuam-se, mesmo na França e na Alemanha, onde o racismo é somente, uma outra expressão da luta de classes. A Europa Social, rudemente conquistada através de lutas tenazes, com sacrifícios inauditos, está ser minuciosamente dizimada, em nome de uma fraudulenta "paz duradoura" e de uma ilusória "unidade na diversidade", que somente serve o grande capitalismo monopolista. Repare-se que, até agora, nunca foi feita a crítica do capitalismo, mesmo por aqueles grupos sociais e por aqueles partidos políticos mais indicados, pela natureza dos seus objectivos e pela índole da sua essência, a introduzir uma reflexão sobre as novas modalidades da exploração humana.

A Esquerda vive na ambiguidade de tentar encontrar uma resposta para as interpelações, e de nada fazer, em matéria de procedimento ideológico, para estimular um debate. Como, há tempos, escreveu Miguel Urbano Rodrigues, ergue-se cada vez mais a dificuldade de se definir o que, rigorosamente, é a Esquerda. Os métodos e as análises que marcaram e avivaram gerações de estudiosos, deixaram de constituir sinais referenciais. Muitos dos que se diziam "marxistas" nunca haviam lido Marx. Outros citavam-no ou evocavam-no em segunda, terceira e quarta mãos. Outros foram para o marxismo pelo lado filosófico e cultural: Lukacs, Goldmann, Kostas Axelos, Istvan Meszaros, Althusser, o próprio Garaudy, agitaram o pensamento europeu, com revelo para Itália, França, Espanha e Portugal. E seria muito instrutivo apurar, hoje, a influência que aqueles homens tiveram entre os "católicos progressistas" portugueses.

Os aggiornamentos apressados medeiam o esquecimento deliberado e o oportunismo mais repelente. Para se negar, combater ou reafirmar, o pensamento marxista marcou as ideias que nortearam escritores, cineastas, jornalistas, artistas, arquitectos. A pulsão criadora respondeu a uma ética fundamental. E definiu e organizou as questões semânticas que se apresentavam no discurso ideológico. Os debates acesos entre cineclubistas, críticos de cinema e os apaniguados do salazarismo que escreviam em numerosos jornais e revistas afectos ao regime, atingiram aspectos inauditos. Tanto mais expressivos quanto a Censura permitia. A benevolência recaía nos asseclas do Estado Novo, a violência nos textos dos antifascistas. Cada um cumpria o seu papel. Mas tenho de admitir que havia qualquer coisa de heroicamente romântico naqueles que se batiam (com armas extremamente desiguais) pelo desejo singelo de ser livres.

O prazer do risco associava-se à enunciação das coisas contrárias. É um legado riquíssimo, que só néscios ou criaturas de má-fé se atrevem a negar. Havia uma relação muito profunda entre o que se desejava para Portugal e a fé de que esses desejos eram absolutamente possíveis. A ideologia colocava-se no mesmo plano da exequibilidade. O que, naturalmente, constituía, se não um disparate, pelo menos uma completa ingenuidade.

Pouco dessa herança democrática, socialista, humanista, solidária, foi resguardado e defendido. A década de 80, nesse aspecto, permitiu a distorção das raízes essenciais desse projecto. Incentivou-se o elogio da juventude pela juventude, cuja sintaxe política tem parentesco com o fascismo. A liquidação da memória colectiva foi outra componente da avançada punitiva. O ataque começou pela Imprensa, alvo e cobiça dos partidos, de todos os partidos (com graves responsabilidades para as Esquerdas, todas elas), e de todos os Governos, todos eles. Os jornalistas mais politizados, procedentes da geração de 60, foram colocados em prateleiras ou impelidos a assinar contratos amigáveis de rescisão – como se houvesse amigabilidade em documentos deste teor. As Redacções dos jornais ficaram desprotegidas. A memória dispõe de um poder cultural e ético que assusta os possidentes.

Certos momentos, presumidamente primordiais no desenvolvimento harmonioso do País, foram decisivos para a obstrução do movimento progressista que, lentamente, se ia moldando. O PS está atolado em culpas. Por desvio ideológico, por conluio com as forças mais reaccionárias, por desprezo pelo seu próprio património político. Ao que se sabe, o próprio Willy Brandt teria avisado dirigentes do PS de que as inflexões do partido eram demasiadamente à Direita.

Não é de estranhar que as coisas tivessem chegado a este ponto. Por outro lado, o PSD mergulha na podridão de uma inércia e desdobra-se em dislates, que nem o dislate de Mário Lino sobre o "deserto" da Margem Sul e a pertinaz teimosia na Ota, consegue atenuar ou minimizar. Mendes, lacrimoso e mortificado, afirmou: "O PS está à Direita do PSD". Não sou eu quem vai desmentir o ardoroso político.

A circunstância de José Sócrates seguir, decisivamente, um caminho social-liberal, parece irreparável. O PCP esvazia-se. Vive na contradição de não poder mudar e não desejar mudar. Em qualquer dos hipotéticos casos, perderia sempre. No primeiro, faria desaparecer a sua identidade específica. O CDS não é carne, nem peixe, nem arenque vermelho. É o que os seus dirigentes têm sido. Com Paulo Portas acompanhará a ciclotimia do dirigente máximo. O Bloco de Esquerda resiste ao epifenómeno que desempenha. Resiste, por enquanto.

É quase tudo isto que caracteriza a sociedade portuguesa actual. É de quase tudo isto que sobrevive José Sócrates e o seu Governo.

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