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Luigi Zingales - Professor de Finanças 07 de Janeiro de 2011 às 12:11

A alquimia financeira da Europa

É universalmente reconhecido que um factor-chave inerente à crise financeira de 2007-2008 foi a difusão das CDO (obrigações de dívida colateralizada)

É universalmente reconhecido que um factor-chave inerente à crise financeira de 2007-2008 foi a difusão das CDO (obrigações de dívida colateralizada), esses infames SPV [Special Purpose Vehicles - veículos de finalidade especial, que funcionam como veículos de titularização para a autonomização dos créditos e que, consoante o modelo adoptado, assumem a natureza de sociedades, de fundos ou de alienação fiduciária (trusts)] que transformaram a dívida de menor qualificação em dívida altamente qualificada. No entanto, enquanto estas estruturas perderam popularidade em Wall Street, ganharam-na no outro lado do Atlântico.

Afinal de contas, o Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF), criado pelos países da Zona Euro no passado mês de Maio, é a maior CDO alguma vez criada. Tal como aconteceu com as CDO, o FEEF foi apresentado como um meio de reduzir os riscos. Infelizmente, o resultado poderá ser semelhante ao das obrigações de dívida colateralizada: todo o sistema bancário poderá entrar numa espiral de queda.

As CDO são uma forma de alquimia financeira: veículos de finalidade especial que compram o equivalente financeiro ao chumbo (activos endossados a hipotecas de baixa qualificação) e que se auto-financiam sobretudo com o equivalente financeiro ao ouro (obrigações com notação 'AAA', que são bastante procuradas). Esta transformação baseia-se num princípio sólido e em dois princípios débeis.

O princípio sólido é o suplemento do colateral. Se um colateral de 120 dólares garante uma obrigação de 100 dólares, a obrigação é mais segura, sem qualquer sombra de dúvidas. No entanto, a dimensão dessa segurança depende dos retornos do conjunto das obrigações que compõem a CDO.

O primeiro princípio débil é que se o retorno de todas estas obrigações estiver altamente correlacionado, podendo assim todas elas podem entrar em incumprimento ao mesmo tempo, então a sobre-colateralização (o tal suplemento da colateralização) não é muito útil. Em contrapartida, se os retornos não estiverem correlacionados, é extremamente improvável que entrem todos em "default" ao mesmo tempo e, nesse caso, o suplemento da colateralização é suficiente para garantir um retorno mais seguro.

Lamentavelmente, não há qualquer modelo matemático preciso que seja capaz de determinar a correlação entre os títulos, pelo que essa correlação é sempre uma conjectura baseada sobretudo (e, por vezes, inteiramente) no comportamento passado. Assim sendo, a explosão das CDO nos Estados Unidos durante a expansão do mercado imobiliário baseava-se na no frágil pressuposto de que os preços das casas nunca caem a uma dimensão nacional.

O segundo princípio frágil prende-se com o facto de os emitentes das CDO, para validarem estes instrumentos, terem confiado nas agências de notação financeira. Historicamente, estas agências tinham sido confiáveis em matéria de previsão dos riscos de incumprimento das empresas. Não obstante, grande parte da sua credibilidade assentava num frágil equilíbrio de poderes. Uma vez que cada emitente representava uma pequena fracção das suas receitas, as agências de "rating" não estavam dispostas a comprometer as suas reputações só para agradarem a um qualquer emitente individual.

No entanto, o mercado das CDO estava bastante concentrado: seis ou sete emitentes controlavam a maioria do mercado e este acabou por representar 50% das receitas totais obtidas pelas agências de notação através dos seus "ratings". Subitamente, os emitentes passaram a ter uma influência muito maior sobre as agências de notação financeira, que, à semelhança de qualquer bom vendedor, se mostraram prontas a ceder um pouco para não perderem clientes importantes.

Consequentemente, o mercado das CDO não propagou grandemente o risco, "apenas" o transferiu e camuflou. Quando o mercado imobiliário norte-americano começou a desmoronar-se, os maiores subscritores (como a Contrywide) não entraram imediatamente em falência porque tinham vendido a vasta maioria dos seus empréstimos no mercado das obrigações de dívida colateralizada. No entanto, a incerteza criada por estas CDO acabou por quase fazer colapsar todo o sistema bancário norte-americano.

A Europa está a seguir um caminho semelhante. O Fundo Europeu de Estabilização Financeira, criado para ajudar os países que se deparam com "falta de liquidez", foi concebido precisamente como uma obrigação de dívida colateralizada. O FEEF compra as obrigações dos países que têm dificuldades em conseguir financiar-se nos mercados (como, por exemplo, a Irlanda) e emitem obrigações que estão qualificadas com um "rating" 'AAA'. Como é esta alquimia possível? Uma vez mais, baseia-se na sobre-colateralização, no pressuposto de uma distribuição conjunta dos possíveis resultados e no inevitável selo de aprovação das três principais agências de notação financeira [Fitch, Standard & Poor's e Moody's].

Com o FEEF, a sobre-colateralização assume a forma de garantias que são dadas pelos restantes países da Zona Euro. No entanto, entre os principais países, só a França e a Alemanha é que têm um "rating" 'AAA' da sua dívida soberana. Como pode uma obrigação garantida em grande parte por países como a Itália e Espanha (prováveis candidatos a uma crise orçamental) oferecer uma qualificação 'AAA' às obrigações irlandesas? Segundo a Standard & Poor's, por exemplo, "o 'rating' do FEEF reflecte o nosso ponto de vista de que as garantias oferecidas por países com um 'rating' soberano de 'AAA' e AS reservas de liquidez disponíveis investidas em títulos 'AAA' cobrirão, em conjunto, todo o passivo do FEEF".

Mas o valor das garantias depende da situação. Desde que o único país a ser resgatado seja a Irlanda, não há qualquer problema. Mas se o Fundo Europeu de Estabilização Financeira tiver de dar garantias à dívida de Espanha, estará a Alemanha realmente disposta a intervir e a recorrer ao dinheiro dos seus contribuintes para cobrir as perdas da banca espanhola? E qual poderá ser o grau de compromisso dos bancos franceses e alemães - e, dessa forma, quanta mais tensão orçamental terão a França e a Alemanha de suportar?

Neste caso, também não existem fórmulas matemáticas capazes de ajudar, porque aquilo que precisamos de provar é a razoabilidade dos nossos pressupostos. É por essa razão que as opiniões das agências de notação financeira são tão valiosas. Infelizmente, deveremos questionar-nos até que ponto é que "ratings" que atribuem estão distorcidos pelo poder político dos países membros da Zona Euro.

Desde o despoletar da crise que as agências de "rating" têm estado sob fogo cerrado e, em ambos os lados do Atlântico, tem sido debatida a necessidade de uma maior regulação do sector financeiro, que poderá afectar severamente a actividade destas agências. Neste contexto, que grau de independência é que terão as agências de notação financeira para expressarem as suas opiniões (atribuírem as suas notações) sobre as próprias instituições que irão regulá-las? Teremos de esperar pela fixação do preço dos Credit-Default Swaps [CDS - contratos financeiros que permitem que o titular se proteja contra o risco de incumprimento do crédito; o risco de "default" é transferido para o vendedor do "swap"] sobre a dívida do FEEF, que será determinado este mês, para vermos até que ponto é que os mercados acreditam nos seus "ratings".

Contudo, independentemente deste teste, a Alemanha parece ter tentado resolver a quadratura do círculo: ajudou os países em apuros, sem ter de largar (até ao momento) um único euro. Todavia, tal como aconteceu com as CDO, esta poderá ser uma vitória de Pirro. O FEEF conseguiu obter um ganho de curto prazo, mas em troca de perdas muito mais avultadas no caso de a situação se deteriorar: uma crise orçamental em Espanha poderá fazer colapsar todo o edifício.

Depois da crise dos empréstimos "sub-prime" [créditos hipotecários de alto risco, dada o fraco historial creditício dos tomadores de empréstimos], os políticos afirmaram que o mercado era míope e irracional, e correram a propor novas regulações. Se bem que parte das críticas possam ter o seu mérito, que autoridade moral têm os políticos para criticar? Afinal de contas, tal como o Fundo Europeu de Estabilização Financeira o demonstra, a orientação dos políticos pode ser de mais curto prazo e mais irracional do que a dos mercados, ao repetirem os mesmos erros pelo simples facto de nada terem aprendido com eles.

O veredicto dos mercados vai, sem dúvida, ser bastante severo. Tal como Oscar Wilde um dia disse, "se me enganas uma vez, devias ter vergonha; se me enganas uma segunda vez, quem devia ter vergonha era eu".



Para aceder ao "podcast" deste texto em inglês, deve utilizar o seguinte link:
http://media.blubrry.com/ps/media.libsyn.com/media/ps/zingales6.mp3


Luigi Zingales é professor de Empreendedorismo e Finanças na Graduate School of Business da Universidade de Chicago e co-autor, com Raghuram G. Rajan, de "Saving Capitalism from the Capitalists".


© Project Syndicate, 2010.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro
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