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A fronteira de vidro

O sector grossista em Portugal ainda que há muitos anos em declínio, possui uma função inegável, desenvolvida através dos cash and carry, conceito de loja, cuja morte já foi muitas vezes anunciada, por se associar ao declínio do comércio retalhista tradicional.

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Nos seus primórdios, os cash and carry dispunham de um sortido alimentar limitado que progressivamente foram alargando a produtos frescos e a produtos não alimentares do tipo eletrodomésticos, mobiliário, informática, etc. Este processo de alargamento do sortido reduziu a rotação de stocks, aumentou os custos operacionais e financeiros e provocou a perda de competitividade, quando comparados com os novos conceitos entretanto surgidos, nomeadamente os hipermercados. Esta situação obrigou a um reposicionamento do conceito de que resultou uma reestruturação do sector, através de mecanismos de concentração, da procura de sortidos mais bem adaptados ao segmento das coletividades e da restauração, da modernização dos métodos de gestão, de um maior rigor na seleção das implantações e em zonas de maior potencial, assim como na implementação de técnicas e serviços para fidelização de clientes.

Desta forma, o conceito conseguiu esbater a sua imagem de armazém e realçar o visual de grande superfície, inspirando-se em muitos aspetos nos hipermercados, nomeadamente através do alargamento dos sortidos, da melhor qualidade dos lineares, de mais serviços aos clientes, do uso de técnicas de marketing direto, do recurso ao merchandising no ponto de venda, etc. Os operadores de cash and carry aperceberam-se de que a sua clientela necessitava de ter uma visão global da oferta existente no mercado, era também sensível a compra por impulso, necessitava de embalagens com quantidades à sua medida, exigia a prática constante e sistemática de promoções e adorava a oferta de novos produtos.

Poder-se-á até afirmar, assim, que os grossistas se inspiraram, ou mesmo imitaram, os métodos dos grandes distribuidores retalhistas. Os novos clientes profissionais anteriormente referidos eram, como tais, mais exigentes, porque quando se abasteciam estavam a trabalhar e necessitavam de sentir, nesses momentos, que ganhavam tempo e dinheiro. Verifica-se ainda que alguns sectores da produção tendem a cobrir toda a fileira, aproximando-se diretamente do consumidor final, e que muitos distribuidores percorrem o caminho inverso procurando adquirir alguma capacidade produtiva, pelo que os grossistas, na sua qualidade de intermediários puros dos circuitos, têm cada vez mais o seu espaço de ação reduzido e a sua função mitigada.

Para eliminar as ameaças e potenciar as oportunidades, os cash and carry deverão continuar a desenvolver dois tipos de ações ousadas, mas imprescindíveis. Em primeiro lugar, a ação de promover a integração quer horizontal, quer vertical. Tal como se verifica no retalho, as unidades independentes terão cada vez menos hipóteses de sobreviver e só a criação horizontal de redes integradas de cash and carry e a integração vertical nestas dos seus clientes profissionais consolidarão o sector. Em segundo lugar, a ação, até agora considerada fora de questão por receio de perda de credibilidade junto dos seus clientes retalhistas, de abrir os cash and carry aos consumidores finais.

Na verdade, não faz hoje nenhum sentido limitar o acesso a estas unidades apenas aos clientes profissionais, quando nada impede que eles acedam aos hipermercados. E, é absurdo que os consumidores finais que tenham capacidade aquisitiva e de armazenamento doméstico não possam abastecer-se em unidades tipo cash and carry. O exemplo vem, mais uma vez, dos Estados Unidos, com o conceito de warehouse club, lojas híbridas de hipermercado e cash and carry, acessíveis a todo o tipo de clientes e que, no conjunto das mais de mil unidades existentes, faturam mais de 20 biliões de dólares. O Reino Unido foi escolhido por uma das principais cadeias americanas de warehouse clubs, a Price/Costco, para a sua primeira implantação europeia, a que se seguiu, mais recentemente, a abertura de lojas em Espanha, pelo que o caminho está aberto, mas o exemplo tem demorado a ser seguido. No resto da Europa tal tendência afirma-se cada vez mais e até em África, onde por exemplo em Angola, os cash & carry abastecem com sucesso, quer os clientes profissionais, quer os consumidores finais.

Os grossistas portugueses, lenta mas progressivamente, terão de alterar o seu atual posicionamento face ao mercado, cujos reflexos se farão sentir inevitavelmente nos próprios conceitos dos seus pontos de venda. A abertura dos cash & carry a todo o tipo de clientes tem de deixar de ser um assunto tabu e, se hoje ainda é uma opção estratégica, amanhã será um imperativo de evolução. A fronteira de vidro que separa ainda o sector grossista do sector retalhista está feita em estilhaços e no futuro, para além dos produtores, só existirão distribuidores e consumidores.

Um sinal positivo foi dado agora, em plena crise pandémica, em que um dos principais operadores, a Makro, decidiu, abrir as suas portas aos consumidores finais com a justificação de poder tornar mais fácil aos consumidores o acesso aos produtos essenciais. Espero que a partir deste momento e finalmente, outros grossistas lhe sigam o exemplo e nunca mais impeçam os consumidores, seja qual for a sua natureza, de poder fazer compras nos seus cash & carrys.

 

 

José António Rousseau

Docente e investigador da UNIDCOM/IADE/IPAM

www.roussesu.com.pt


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