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[418.] Citroën

Os anúncios do modelo automóvel DS4 de Citroën apelam ao inconformismo dos observadores e chamam "belíssimo defeito" à insolência, um comportamento que décadas atrás chegava para pôr muita gente atrás das grades.

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O raciocínio escondido dos publicitários na campanha publicitária, quer na versão vídeo, quer na imprensa, é o seguinte: precisamos de deslocar os potenciais compradores de carros para o estilo Citroën, de quebrar o enguiço dos que insistem em comprar a mesma marca da concorrência; precisamos de lhes mostrar que há outra forma de ver, de estar na vida; os potenciais compradores têm de romper com o que lhes é habitual, com a obediência a si mesmos, às suas próprias convenções, gostos e hábitos.

Daí o apelo ou ordem: "Experimente dizer não. Não às formas feitas, não ao convencional, não ao conformismo." No vídeo, a retórica é mais concreta do que no anúncio de imprensa: a narrativa audiovisual como que diz ao observador (homem) que ele é conformista quando diz sim a patrão e à mulher. Ele é um "yes man", expressão que no anúncio se assemelha a um insulto. A primeira imagem do anúncio é um rebanho de carneiros e ovelhas. E a última do segmento inicial, mostrando o conformismo, é a de um "rebanho" de homens aplaudindo numa plateia, possivelmente um discurso do chefe.

O anúncio interrompe violentamente esse segmento e o texto diz: "Passamos a vida a dizer sim. Já experimentou dizer não?" É no instante do "não" que surge a imagem do Citroën DS4. "Diga não ao conformismo. Descubra um automóvel que é diferente de todos os outros."

A ordem do slogan arrisca a formulação na negativa. Para dizer sim ao carro, o observador precisa de negar o seu estilo de vida, ideias, preconceitos, hábitos. Deve despir-se da sua natureza para poder apreciar o DS4. Sendo uma imposição de grande alcance, os anúncios não apelam, no final, ao impulso de compra, mas apenas ordenam ao observador que vá a um concessionário da marca experimentar e "diga o que pensa, nem mais ou menos". Este "nem mais, nem menos" também poderia ser: "Só isso", isto é, "também não queremos exigir-lhe demais".

A mesma retórica motiva, num reclame de imprensa, a frase "A insolência é um belíssimo defeito". O "defeito" é transformado num oxímoro, ao classificar-se como "belíssimo". O uso deste superlativo revela como era preciso inculcar a ideia, sem deixar margens para dúvidas: a insolência, mais do que bela, é belíssima. Por efeito do oxímoro, passa de defeito a qualidade. Esta frase aproxima-se, pois, da assinatura de uma campanha da Peugeot aqui há anos, "coisa feia, a inveja", no uso de um "defeito" como chamariz. Só que, ao contrário dessa, a Citroën faz o elogio da insolência.

Em 2002 escrevi o ensaio "Da insolência à obediência: Alterações nas atitudes dos desposados (1900-1945)" para a revista "Sociologia, problemas e práticas": http://www.scielo.oces.mctes.pt/scielo.php?pid=S0873-65292002000100008&script=sci arttext. No artigo, tratei da intercepção de comportamentos com questões políticas e de classe porque verifiquei, na documentação da época, a importância que a sociedade dava à insolência. Os proletários insolentes facilmente amargavam atrás das grades por alguma palavra ou algum gesto incómodo para os burgueses. O poder partiu a espinha a esse tipo de comportamento, que foi substituído pela obediência. Por razões comerciais, a Citroën usa a "insolência" do inconformismo consumista para substituir a "obediência" às outras marcas pelo apreço pela Citroën. Um século depois, a insolência é colocada ao serviço do sistema e do consumismo.

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