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[160.] Santa Casa da Misericórdia

Quantas instituições ou empresas em Portugal apresentam uma idade superior a um século? Uma dúzia? E dois ou três séculos de vida? Meia dúzia? E quatro? E cinco?

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Só mesmo a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa poderia fazer um anúncio com uma narrativa de história que começa no ano em que Vasco da Gama chegou à Índia.

É certo que a Santa Casa é uma instituição ligada ao poder desde a sua origem, fundada como foi por Leonor, viúva do rei João II. Hoje a sua relação com o Estado é ainda umbilical. Isso não diminui o valor da longevidade, num país em que as instituições não sobrevivem às mudanças políticas reformistas ou revolucionárias e o poder do momento raramente resiste a mudar nomes e a fundir institutos e «institutas».

Com 508 anos, a Misericórdia está bem e recomenda-se – e tem dinheiro para fortes campanhas de publicidade. Há poucos meses fez uma campanha de verde vestida, com personagens que beneficiam de assistência ou tratamento acompanhadas de uns grandes algarismos verdes. Uma criança na cama segurava os algarismos 5 e 7; uma jovem com dois bebés tinha os algarismos 6 e 3 à sua frente. Os números chamavam a atenção, mas eram absurdos, pois não se referiam com uniformidade às unidades, centenas, milhares, dezenas ou centenas de milhares. Nos casos referidos, o 6+3 pretendia sugerir «mais de 6300 acções de apoio de emergência social» e o 5+7 os «mais de 570 mil tratamentos em serviços de saúde». A campanha era tola na forma de pluralizar, ou generalizar, a imagem mostrada com os frios algarismos verdes.

Relacionando o magnífico trabalho social da Misericórdia com os jogos de sorte e azar de que ela tem o monopólio, a campanha pretendia ser ou uma justificação para a forma como o dinheiro é gasto ou um convite ao jogo para se proporcionar mais fundos à instituição. A nova campanha não estabelece essa desnecessária relação. Diz que a Santa Casa anda cá «desde 1498», frase que remete para os logótipos de centenas de empresas e de lojas que ostentam a idade como um valor de sabedoria e experiência verdadeiramente insubstituível mas a Santa Casa anda desde 1498 a «fazer o bem, cada vez melhor» e isso, efectivamente, basta. O anúncio televisivo é óbvio na sua epopeia com um deficiente assistido através dos séculos, de 1498 a 2006. É óbvio mas bem feito, com eficácia e agilidade narrativa. No final, terminado o percurso de melhoria constante da assistência ao perneta, alguém dá a mão a outro, na rua, simbolizando que o ciclo não pára. A música, do género fado transfigurado, ajuda a situar a narrativa em Lisboa.

Os anúncios de imprensa recorrem ao tradicional azulejo azul e branco, também ele uma marca da capital, para mostrar o trabalho da Santa Casa na formação dos excluídos, no apoio aos deficientes e aos idosos, etc. Os azulejos virtuais mostram situações impossíveis no tempo em que se faziam azulejos assim, mas isso apenas estabelece a incrustação da Santa Casa nos séculos «desde 1498» e a sua constante modernização. O velho que simboliza o Programa de Residência Assistida e o Programa Mais Voluntariado Menos Solidão diverte-se no azulejo jogando numa consola. Alguns dos azulejos virtuais são melhores do que outros, mas até os menos conseguidos ostentam aquele toque de piroso que não diminui, antes acrescenta o encanto desta forma artística abraçada pela história de Lisboa – e agora pela Misericórdia.

Enfim, uma boa campanha, que, pela sua profusão, está já certamente «a fazer o bem, cada vez melhor» a uma imprensa quase sem publicidade em tempo de vacas magras.

P.S. Referi na semana passada anúncios da Teka em que raparigas usavam cartão de caixotes para mostrar as suas reivindicações. Lembrei-me depois da campanha da TV Cabo há um ano em que sósias de actores, como de Angelina Jolie, faziam exactamente o mesmo e na mesma pose. Terá sido cópia? Terá sido a mesma agência? O mesmo «criativo»?

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