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A valiosa inquietude

Fazer a retrospetiva de um ano, quando o mesmo se aproxima do seu término, não passa de uma mera banalidade. Mas é irresistível. Pelo menos para mim. É envolta nessa banalidade que o meu pensamento me leva a Saramago.

Não é sobre Saramago que vos venho falar hoje, até porque nem saberia como o fazer. A Saramago peço emprestado o Ensaio Sobre A Cegueira, obra literária cuja leitura recomendo vivamente, quanto mais não seja pela valiosa inquietude em que nos submerge, e que nos dias de hoje se reveste de uma importância vital. Retrata a inquietude advinda duma mudança repentina e que converte o indispensável na ausência do que acreditávamos ser indispensável.

Recuemos um pouco no tempo, a um passado tão recente, mas que já parece tão distante. Voltemos a dezembro de 2019. Altura em já todos ansiávamos pela habitual pausa natalícia, nem que fosse para que, por breves horas ou dias, nos pudéssemos dissociar de tudo o que nos “esmaga” diariamente. E, embora do outro lado mundo, em território asiático, já surgissem esboços de uma nova pintura monocromática, por aqui a tranquilidade continuava a reinar. Eis que 2020 surge. Ano bissexto, por sinal. Na crença de alguns, ano de mau agouro. Opinião que não partilho. O ano bissexto ajusta o calendário terrestre, já que a Terra demora 365 dias 5h 48 m e 47 s a dar uma volta completa em torno do Sol. Mas desta vez, estou em crer, o ano bissexto também veio munido de um novo propósito: o de nos remeter para a tal valiosa inquietude, que referi a propósito do Ensaio Sobre A Cegueira. Inquietude que nos mostra o quão ínfimos somos. Que nos relembra, a cada minuto, o muito que temos para construir, sem deixar um rasto de destruição.

Contudo, e apesar desta dura lição a que todos estamos a ser sujeitos, e que já semeou mais de 1,7 milhões de mortes pelo mundo fora, continuamos a assistir a inúmeros episódios lamentáveis. E, não, não me estou a referir aos devaneios verbais daqueles que se acham na posse da verdade absoluta mas que, por vezes nas entrelinhas, vão deixando rastilhos prontos a serem ateados. Pelo contrário, falo de momentos a que todos assistimos, ao vivo e a cores. Falo de “não consigo respirar”, a frase proferida por George Floyd momentos antes de morrer, vítima do racismo que persiste em continuar. Dos refugiados em Lesbos, aos tropeções de campo de refugiados em campo de refugiados. Das populações no norte de Moçambique, vítimas de criminosos vestidos de fanatismo. Das inúmeras vítimas de violência doméstica que teimam em não acabar. Da lamentável morte do cidadão ucraniano Igor Homeniuk que, inexplicavelmente, esteve longos meses adormecida. Enfim, de toda uma infindável lista de violação dos direitos humanos.

Mas porque estamos no fim de mais um ano, é também tempo de sonhar. Sonhar que os planos de vacinação, que tanto ansiamos e que finalmente se começam a iniciar, não aniquilem também a valiosa inquietude que 2020 nos trouxe. Sonhar que a memória não teime em ser curta. Sonhar que em 2021 vamos ter inteligência para fechar no velho baú, arrumado no sótão, o business as usual. E, envolta nos meus sonhos, me despeço. Até breve e Feliz Ano Novo.

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