Opinião
Inteligência Artificial e o mantra do "reskilling"
Reformular a cultura de aprendizagem e empresarial para esta nova era é muito mais difícil do que confiar nos "deuses do reskilling" e esperar um milagre. Mas, no fim, esta mudança vai trazer resultados que valerão a pena.
Os avanços das IA chinesas, como DeepSeek, Alibaba, Tencent e Moonshot, que há vários meses desenvolvem estas soluções, vão acelerar a adoção global da inteligência artificial. Com uma concorrência crescente para lançar produtos de IA no mercado, a OpenAI perderá o seu monopólio. Como consequência, o uso profissional da IA aumentará significativamente, tendo impacto na forma como trabalhamos, definimos funções e criamos novos "roles" funcionais.
Diante deste cenário, surge a resposta habitual: a necessidade de atualizar competências, com o mantra do "reskilling" e "upskilling". Mas será esta, realmente, a solução? A realidade é bem mais complexa. O "reskilling" não é uma fórmula mágica que se torna eficaz sempre que surge uma nova inovação digital. Basta recordar a década de 2010, com a transformação digital e a era dos dados. Na altura, assistimos a verdadeiras aberrações educativas, como obrigar toda a gente a aprender a programar em R ou Python e a dominar técnicas de "machine learning", mesmo quando essas competências não eram essenciais para muitas funções ligadas aos dados. O resultado? Muitas entidades lucraram com a venda destes cursos, enquanto governos e empresas gastaram fortunas num "reskilling", cujo impacto real no mercado de trabalho foi mínimo.
Agora, com a IA, a história repete-se, mas o cenário é ainda mais complexo e, para alguns, quase apocalíptico. De repente, líderes globais, educadores e, curiosamente, consultoras estratégicas apressam-se a definir a urgência do "reskilling". Embora esta abordagem faça parte da solução, é essencial considerar os desafios e os objetivos dessa estratégia. Com o ritmo acelerado das inovações – que surgem quase semanalmente –, será que vamos estar constantemente a fazer "reskilling"? E além disso, o conceito parece contraditório. Por um lado, defende-se a valorização das competências "humanas", mas, por outro, tratam-se as pessoas como se fossem softwares, passíveis de atualização com um simples clique. Mas estamos a atualizar-nos para quê? Como diria o Gato de Cheshire em "Alice no País das Maravilhas": "Se não sabes para onde vais, qualquer caminho serve."
Aliás, há vários anos que, tanto na Europa como em Portugal e ao nível global, se promovem iniciativas de "reskilling improvement" impulsionadas pela era digital. No entanto, a verdade é que o "reskilling" é um conceito herdado de um mundo corporativo antigo, frequentemente defendido pelos mesmos executivos que investem milhões em consultoria para fazer estudos e criar matrizes de competências que rapidamente se tornam obsoletas. Agora, com o ChatGPT pode criar, em minutos, uma matriz de competências para a sua empresa.
Curiosamente, essas mesmas consultoras que, nos últimos anos, aconselharam governos e instituições sobre a adaptação ao digital encontram-se numa situação crítica. A própria consultoria é uma das áreas mais ameaçadas pela IA. O impacto já se faz sentir, tanto no recrutamento como na redução de postos de trabalho, à medida que as empresas compreendem que podem internalizar muitas das tarefas que antes exigiam apoio externo. Por exemplo, a Microsoft (seguida por outras big tech) anunciou recentemente a suspensão de novas contratações para os seus serviços de consultoria interna nos Estados Unidos.
Como mencionei anteriormente, um dos maiores desafios da IA é que as suas ferramentas ainda estão em desenvolvimento. Novas funcionalidades e capacidades surgem continuamente, transformando o mercado e redefinindo os papéis profissionais. Está tudo a evoluir tão rapidamente que é impossível prever quais serão as competências mais valorizadas dentro de três ou cinco anos. E, pelo caminho que leva, a velocidade de desenvolvimento da IA é tal que, enquanto um ser humano aprende uma nova competência até um nível aceitável, a IA já está na sua vigésima iteração, superando até os 30% mais competentes nessa mesma competência.
Se a mudança é constante, significa que estaremos sempre a atualizar-nos e a aprender. Em vez de apostarmos num "reskilling" pontual, a verdadeira resposta está numa estratégia de aprendizagem contínua.
A questão é: em que vamos formar as pessoas? Atualmente, há uma visão simplista de que a IA se resume a ferramentas como o ChatGPT, que auxiliam na pesquisa, na melhoria de textos, em resumos, etc. Mas, essencialmente, a IA refere-se a entidades não biológicas capazes de realizar tarefas humanas, frequentemente de forma mais rápida e eficiente, superando as capacidades humanas. Portanto, a ideia de que as pessoas precisam de aprender novas competências reflete uma visão limitada da IA, tanto no presente quanto no futuro. Estamos a formar humanos para fazer o quê, afinal? Aquilo que, em princípio, eles já deviam saber fazer?
Mais do que isso, enfrentamos um desafio ainda mais crítico: estamos a preparar-nos para empregos que, em breve, podem simplesmente deixar de existir. Claro que esta transformação não significa apenas a destruição de funções – pelo contrário, novos cargos e especializações começam a emergir. À medida que a IA se torna mais sofisticada, surgem funções que hoje nem conseguimos imaginar. Já falamos de "AI ethicists", "prompt engineers" e "AI trainers", por exemplo. Estas funções exigirão um entendimento profundo da IA e das suas implicações, reforçando ainda mais a necessidade de uma cultura de aprendizagem contínua.
Então, como podemos preparar-nos para este futuro incerto? A chave está em adotar uma mentalidade proativa e orientada para o crescimento. A melhoria de "skills" não é apenas sobre adquirir novas competências técnicas, mas também sobre cultivar adaptabilidade e uma predisposição constante para aprender. Cursos online, certificações e workshops são recursos valiosos para acompanhar as mudanças, mas igualmente importantes são as competências humanas como pensamento crítico, resolução de problemas e colaboração. Estas serão ainda mais valorizadas à medida que a IA assumir tarefas rotineiras.
Eu digo que o verdadeiro desafio do "reskilling" não é tecnológico, mas cultural. Não se resolve com um simples software, porque a questão vai além das competências técnicas – trata-se de adaptar as empresas a uma nova era, onde a aprendizagem contínua é fundamental. Reeducar uma força de trabalho global exige mais do que uma plataforma apelativa estilo Spotify for "Skills"; requer um compromisso real, com investimento, foco e um esforço sustentado ao longo de vários anos. O problema do "reskilling" é a ilusão de uma solução rápida, quando, na realidade, o único caminho viável é construir uma cultura empresarial que valorize a aprendizagem como um processo contínuo.
E temos de pensar que um programa de melhoria de "skills" tem sempre de ser acompanhado de um plano de investimento em progressão profissional.
Dito isto, não estou a afirmar que esta transição será fácil. Reformular a cultura de aprendizagem e empresarial para esta nova era é muito mais difícil do que confiar nos "deuses do reskilling" e esperar um milagre. Mas, no fim, esta mudança vai trazer resultados que valerão a pena.