Opinião
As cripto-túlipas e a loucura das multidões
As bitcoins não dependem de nenhuma instituição e fogem aos radares de escrutínio dos bancos centrais. Encontraram uma utilização intrínseca base como pagamento de transações ilegais na darkweb, ganhando um mercado que foi crescendo com a popularidade da moeda.
A história económica mundial é pautada por momentos caricatos. Um dos mais interessantes é a bolha especulativa de bolbos de túlipa na Holanda do séc. XVII. Num período de poucos anos, entre 1633 e 1637, o preço de um bolbo de túlipa subiu centenas de vezes a ponto de valer em início de 1637 tanto como 10 anos de trabalho de um artesão, o equivalente a quase 50.000 euros aos preços de hoje, criando um mercado de túlipas que valia centenas de milhões.
Como é possível um bolbo de túlipa, que não tem valor intrínseco, exceto permitir florir uma túlipa no futuro, ascender a tais valores?
O que é visto como loucura à distância parecia racional para os agentes económicos naquele contexto específico. As túlipas foram introduzidas no final do século XVI na Europa, e rapidamente se tornaram um símbolo de status e um produto de luxo. A Holanda era o país mais rico do mundo nesta época e era também o mais avançando do ponto de vista comercial e financeiro. Inovações financeiras permitiram transacionar contratos promessa de compra e venda de bolbos de túlipa no futuro e inovações agrícolas permitiram cultivar diferentes tipos de túlipas e de cores, criando uma hierarquia de qualidade das túlipas. Por outro lado, os bolbos de túlipa demoram anos a florir, criando escassez de oferta.
Esta combinação de elementos criou um mercado no qual as túlipas começaram a valorizar mês após mês, desligado do valor de uso da túlipa. Uma vez esta referência desaparecida, não havia limite. Os preços começaram a subir e quanto mais subiam mais compradores entraram no mercado realizando lucros milionários (muitas vezes sem transacionar qualquer túlipa real, apenas contratos de compra futura de túlipas). Um dia, em fevereiro de 1637, o mercado colapsou e os preços caíram mais de 500 vezes (embora tenha continuado a haver cultivo de túlipas e a Holanda ainda hoje seja conhecida como o país das túlipas).
Esta história, que hoje nos parece ridícula, como é óbvio não poderia acontecer na atualidade, com todo o conhecimento económico que temos, ou poderia? Quem compraria bolbos de túlipa por 50.000 euros? De facto, não só pode acontecer como está mesmo a acontecer com a especulação em torno das criptomoedas e, em particular, a bitcoin, que é a mais popular. Hoje, uma bitcoin, que não é mais do que um código digital acedido por uma chave única, tem um valor de quase 50.000 euros, o que representa um aumento de mais de 100 vezes em quatro anos, criando um mercado com capitalização superior a um trilião de euros. Como se explica isto na loucura racional das multidões?
As bitcoin são uma moeda digital baseada num código de programação distribuído e inviolável. Num modelo inteligentemente desenhado por um programador obscuro, a oferta de bitcoins é limitada a 21 milhões de unidades e para receber cada uma destas unidades é necessário realizar operações de computação intensivas, cada vez mais exigentes, aumentando o custo de "minerar" bitcoins (e consumindo milhares de gigawats de eletricidade nesse processo, o que é um gasto de recursos reais inacreditável para criar um recurso digital que não serve para nada). As bitcoins não dependem de nenhuma instituição e fogem aos radares de escrutínio dos bancos centrais. Encontraram uma utilização intrínseca base como pagamento de transações ilegais na darkweb, ganhando um mercado que foi crescendo com a popularidade da moeda. Quem investiu cedo ganhou milhões e quem investiu mais tarde ganhou milhares. Com o aumento de liquidez nas economias globais, que já existia antes da pandemia, mas foi acelerado pelas massivas injeções de liquidez dos bancos centrais, poucas alternativas existem atualmente para aplicar o dinheiro. Como nem consumir podem, os consumidores compram bitcoins que não param de subir, bem como outros ativos financeiros.
O problema com esta dissociação entre o valor intrínseco de um ativo e o seu valor especulativo de mercado é que, perdendo-se a referência, qualquer valor é possível. Uma bitcoin deve valer 500 euros, 5.000 euros, 50.000 ou 500.000? Ninguém sabe. Mas sabemos que amanhã pode valer perto de zero. Mas também pode valer o dobro de hoje desde que haja mais compradores a entrarem no mercado.
De acordo com a teoria económica, uma moeda tem três funções principais. Ser unidade de conta, reserva de valor e meio de transação. No início, a bitcoin não fazia bem nenhuma destas funções, dada a sua fraca aceitação na economia real, a complexidade da sua transação e a oscilação elevada dos preços. Mas começa a desempenhar estas funções melhor. É conhecida a ponto de se começar a tornar unidade de conta, algumas empresas começam a investir em bitcoins para diversificarem as suas reservas de liquidez e outras, como a Tesla, começam a aceitar bitcoins na venda dos seus produtos. A bitcoin pode tornar-se uma moeda global com um valor crescente em que o céu é o limite. Mas também pode amanhã valer perto de zero. Vai depender dos espíritos animais do mercado.
Mas parece-me que a bolha especulativa atual não se limita às criptomoedas. Quando os compradores utilizam o seu próprio dinheiro para comprar ativos financeiros, o risco de bolha especulativa é menor. Mas quanto utilizam alavancagem comprando muito mais do que a sua capacidade financeira, realizando lucros financeiros enormes, temos a receita perfeita para uma bolha especulativa que acabará num crash financeiro, como tantas vezes no passado.
Os sinais estão aí, para quem os quiser ver. Um deles é a falência no final de março do fundo Archegos que fazia exatamente isso - comprava posições acionistas com alavancagem de cinco vezes o capital para conseguir lucros enormes. O fundo foi apanhado por uma pequena correção no setor dos media em que investia com alavancagem e faliu. Resultado? Perdas de 20 biliões para o Archegos e outros tantos biliões para vários dos maiores bancos mundiais que lhe emprestaram dinheiro para os seus investimentos de risco.
A generalidade dos mercados financeiros nos Estados Unidos e de ativos digitais estão no seu ponto mais alto de sempre no meio da maior crise económica de sempre. Sim - as ações americanas estão em geral 30% mais altas do que no final de 2019, antes de se saber que ia haver uma pandemia! As valorizações estão a ser baseadas não na expectativa de lucros futuros das empresas, mas sim no desporto de investir a liquidez em ativos financeiros dado o "fear of missing out" das valorizações atuais. Quando os mercados financeiros se afastam da economia real, e é dada liberdade de uso de produtos financeiros complexos com alavancagem, normalmente as coisas acabam muito mal…