Opinião
Uma guerra resolve-se a negociar, sobretudo se for comercial
Teimamos sempre em não aprender com os erros do passado. Desafios internos e externos dos EUA levaram a administração Trump a trazer de volta os fantasmas dos anos 30.
No último sábado, o Presidente Trump anunciou mais um "round" de tarifas, as quais implicam que 50% das exportações chinesas para os Estados Unidos da América estão já incluídas nesta guerra comercial. A resposta chinesa não se fará esperar, apesar da retórica ameaçadora da administração dos EUA. Não deixa de ser notável que, depois de passarem 50 anos a constituir uma ordem mundial baseada em regras, compromissos e instituições, a abordagem dos EUA tenha mudado de forma tão radical.
A situação é irónica, pois foi uma guerra comercial semelhante a esta, e as consequências desastrosas que daí advieram para a economia mundial, que conduziram à ordem vigente, na qual os princípios de comércio livre monitorizados pela OMC têm a primazia sobre a força negocial de cada nação. Em 1930, o senado dos EUA aprovou a Smoot-Hawley Tariff Act, que provocou a retaliação dos principais parceiros comerciais dos EUA. A opinião consensual de economistas e historiadores é a de que a guerra comercial que se seguiu exacerbou a Grande Depressão - existem estudos que demonstram inclusive que terá causado uma quebra no comércio mundial de 33%. Este período acabou com Franklin D. Roosevelt, que deu início à redução negociada das tarifas dos EUA, em 1934, e Harry S. Truman, que convenceu o mundo a cooperar no sentido do comércio livre, com a criação do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) após a Segunda Grande Guerra.
Mas teimamos sempre em não aprender com os erros do passado. Desafios internos e externos dos EUA levaram a administração Trump a trazer de volta os fantasmas dos anos 30. Por um lado, o crescimento das exportações chinesas e o eterno défice comercial dos EUA servem de bode expiatório para o aumento da desigualdade e a diminuição da classe média. Num estudo recente, David Autor mostra que os estados onde Trump e os republicanos mais progrediram foram os mais afetados pelo aumento das importações da China. Confrontar a China assegura a Trump mobilização dos seus apoiantes.
Por outro lado, os EUA tremem, do ponto de vista geoestratégico, perante o contínuo crescimento da China e o seu posicionamento enquanto superpotência. E se até há um par de anos alimentavam o sonho de que uma China industrializada passaria a jogar segundo as regras do sistema capitalista internacional (como fez a Coreia do Sul ou o Japão), as ações e as declarações recentes de Xi Jinping demonstraram de forma inequívoca que a China considera o seu sistema e a sua visão para o mundo superior à via democrática-liberal e não tem qualquer intenção de convergir para a ordem estabelecida pelas potências ocidentais no pós-guerra.
Perante o desafio de política interna e a preocupação geoestratégica, os EUA optam pelo confronto, para já de foro comercial. O objetivo não é claro. O argumento anunciado de levar a China a respeitar as regras da propriedade intelectual é difuso. Reduzir a dependência das exportações e importar mais é algo que já estava em marcha para a economia chinesa. O objetivo principal é definir a China como um rival, a fim de mobilizar politicamente a sociedade dos EUA (como serviu o Japão nos anos 80), e tentar destabilizá-la economicamente. Do lado da China, a surpresa e a incapacidade de lidar com a esta questão são inquietantes. Os chineses parecem considerar a situação mais um epifenómeno de Trump, e não uma nova realidade sociopolítica americana. Pelo que expus acima, não estou seguro de que assim seja.
Assim, é possível que esta guerra comercial continue e se transforme cada vez mais numa "proxy war" entre as duas superpotências, com os políticos indisponíveis para cederem perante os seus públicos internos. Como aconteceu com a Smott-Hawley, quando as consequências se começarem a tornar nefastas já os políticos se acantonaram e a teimosia ideológica terá criado uma narrativa alternativa. Más ideias políticas sobrevivem duradouramente com o apoio dessas narrativas. O risco para a economia global é o de um novo ciclo recessivo causado pela redução do comércio internacional, que seria fatal para uma Europa ainda a recuperar tropegamente da crise e, consequentemente, para Portugal.
De toda a forma, esta guerra comercial entre duas nações com sistemas económicos, sociais e culturais muito diferentes - demasiado focadas na pretensa superioridade do seu sistema e pouco disponíveis para aprender, negociar e assumir compromissos - deixa patente a nova realidade geopolítica internacional. A solução passa pela necessidade de novas ideias e instituições no sistema internacional. O ponto mais crítico é o facto de o comércio internacional ser a maior plataforma de criação de valor da economia mundial. Quanto mais trocas, especialização e escala, maior será a produtividade e o nível de vida das populações. Este é um dos resultados mais robustos da ciência económica moderna.
O desafio é que o sistema vigente foi desenhado para moderar as relações entre dois países com economias de mercado. Não foi pensado para as relações entre um capitalismo de Estado e um capitalismo de mercado. Deste modo, novas regras e instituições serão necessárias para esta nova era. Este é um desafio fascinante para políticos, académicos, economistas e juristas e um ponto crítico da agenda para o próximo decénio. Mas antes disso, temos de aprender a sentarmo-nos a uma mesa e conversar e negociar. É esse o primeiro passo que se pede a Donald Trump e Xi Jinping, para bem de todos nós!
Professor na Nova SBE
Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico