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23 de Abril de 2019 às 20:30

Os méritos da privatização parcial

A vantagem do controlo público é, teoricamente, a de alinhar a gestão com os objetivos estratégicos e sociais. Apesar de alguns detratores da intervenção estatal considerarem que nenhum governo tem ideia desses objetivos e, se tivesse, não teria a capacidade de os operacionalizar.

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A aproximação do calendário eleitoral traz para a ribalta as questões ideológicas de sempre, pelos votos que atraem ao polarizar a sociedade. É assim em Portugal como em outras democracias. Há poucas semanas, voltou-se a falar de privatização da CGD, e imediatamente cada um adotou a sua posição instintiva a favor ou contra. É importante, nestas alturas, voltar a rever os argumentos para tentar trazer novas soluções.

 

A privatização de empresas públicas é um tema antigo na agenda económica, que, apesar de despertar paixões ideológicas, é tecnicamente complexo e com muitas "nuances". Talvez por isso, a prática é frequentemente pouco ideológica. Por exemplo, na socialista França, as empresas que fornecem água e esgotos urbanos são privadas; enquanto na capitalista Singapura, as principais empresas (e.g. Singapore Airlines) são públicas. Em ambos os casos são muitos bem geridas, com benefícios para o consumidor e para a sociedade, pelo que ninguém pensa em alterar o "status quo".

 

A vantagem do controlo público é, teoricamente, a de alinhar a gestão com os objetivos estratégicos e sociais. Apesar de alguns detratores da intervenção estatal considerarem que nenhum governo tem ideia desses objetivos e, se tivesse, não teria a capacidade de os operacionalizar, vamos assumir aqui que o Governo tem essa visão. É um enorme salto de fé, dirão muitos, dada a dificuldade dos políticos, com vistas nos seus mandatos de poucos anos e sujeitos a inúmeras pressões, em cumprir o seu papel. Mas é um salto que permite avançar para o meu ponto principal.

 

O principal desafio da supervisão das empresas públicas (como das empresas privadas) é a falta de disponibilidade de informação. O Estado, como acionista, tem dificuldade em ter acesso à informação de que necessita para controlar a atividade dos gestores públicos e para incentivar os comportamentos mais apropriados. Todos os dias as equipas de gestão tomam decisões cujos efeitos se estendem por vários anos e avaliar a bondade dessa decisão com informação muito limitada é difícil. Por exemplo, uma decisão de fazer um investimento hoje tem efeitos por muitos anos, tal como a decisão de não o fazer - como avaliar se foi uma boa decisão na altura em que foi tomada? Dificilmente as equipas de supervisão das empresas públicas têm capacidade de trabalho e conhecimento de mercado para cumprirem esse papel. Inúmeros testemunhos na Comissão de Inquérito da CGD revelam essa dificuldade em saber se, na altura, as decisões foram boas ou más.

 

No setor privado, essa capacidade de supervisão pelos acionistas também está longe de ser perfeita. Mas, o mercado de capitais tem ao dispor toda uma indústria de analistas, de "traders", de fundos e de investidores que se controlam mutuamente e que, no fim, ao fazerem mexer o valor da ação, disponibilizam de uma forma muito sintética uma opinião do mercado sobre o estado da empresa. E, pelos movimentos do valor da ação, podemos facilmente aferir se as decisões da gestão melhoraram ou pioraram a situação económica da empresa.

 

Ora, há uma forma de tirar partido do ecossistema de mercado de capitais especializado em avaliar a situação financeira das empresas e, simultaneamente, assegurar que a gestão está alinhada com os objetivos estratégicos do Governo ou do Estado. Para isso, basta assegurar que uma parte pequena - digamos 10% a 20% - do capital da empresa é transacionada no mercado de capitais. Investidores privados transacionariam esse capital de forma a que o valor dessa ação capte, de forma sintética, o valor da empresa. Subidas e descidas desse valor captariam aumentos e diminuições do valor da empresa. E permitiriam ao Governo, e sobretudo aos cidadãos, avaliar de forma simples e rápida a saúde das empresas que são suas. Eventualmente, os prémios dos gestores poderiam ser parcialmente indexados ao valor da ação, de forma a alinhar os incentivos da gestão.

 

Por outro lado, com 10% a 20% do capital, os privados nada poderiam contra o Estado na tomada de decisões da empresa e o Governo seria livre de definir a missão de acordo com a estratégia de desenvolvimento sufragada pelos eleitores. Esta tem sido, por exemplo, a abordagem de Singapura, no sentido de conjugar uma estratégia nacional com a excelência na gestão.

 

Alguns dirão que uma venda deste tipo renderá menos ao Estado, pois os privados não confiam na gestão pública. Mas o objetivo aqui não é maximizar a receita da privatização. É assegurar que uma empresa pública encontra forma da aumentar a transparência e a responsabilização atempada dos seus gestores.

 

O relevante é que diretivas do Governo, escolhas de gestores ou decisões de gestão que afetem a rentabilidade da empresa rapidamente se refletirão no valor da ação. Assim, seríamos facilmente capazes de quantificar de forma transparente os impactos das escolhas feitas. E responsabilizar os responsáveis. Poderíamos estar de acordo com uma decisão que fosse importante para o país e aceitar o impacto negativo no preço da ação, mas saberíamos como cidadãos o que ela custaria na rentabilidade e sustentabilidade da empresa. Mas talvez seja transparência a mais numa democracia.  

 

Professor na Nova SBE

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