Opinião
O tribunal nos tempos de vírus
Todavia, como em tudo na vida, há que buscar algum equilíbrio, quer entre a gravidade do risco e os efeitos das medidas para a sua prevenção, contenção e combate, quer entre a segurança aconselhável e a insegurança e a ousadia necessárias.
Deus me livre de querer entrar pela parenética ou pela profética, reservadas apenas a alguém da dimensão de um padre António Vieira, ou então a quem cultiva, nomeadamente em jeito de mestre-escola, uma espécie de mimetismo de Vieira, ainda que de trazer por casa. Nem sermão, nem profecia, só duas ou três linhas de pensamento e preocupação. Sobre o setor que conheço melhor, a Justiça, embora algumas linhas se possam, porventura, aplicar a outros, e talvez uma ou outra, quem sabe, à “coisa” em geral; sendo “coisa” (em jeito hollywoodiano de filme catástrofe) uma forma de nomear o vírus e tudo em seu redor (sim, ele é ele, mas é também, em quase igual medida, tudo à sua volta – e nem sequer estou ainda no terreno das metáforas da doença, “a la” Sontag, estou apenas na vida prática, no imediato, no dia a dia).
A epidemia é grave, justifica muita preocupação, exige medidas especiais. Isso está, para mim, fora de questão, e devemos seguir no essencial os especialistas na matéria. Ponto parágrafo. Todavia, como em tudo na vida, há que buscar algum equilíbrio, quer entre a gravidade do risco e os efeitos das medidas para a sua prevenção, contenção e combate, quer entre a segurança aconselhável e a insegurança e a ousadia necessárias. Mais a mais, quando com tudo isto se mistura o fator tempo. Ora, vale isto por dizer que, embora tendo em conta a gravidade do que está em causa, mas também sem hiperbolizar essa gravidade (sobretudo sob doses letais de informação, repetição, desinformação e o inevitável espetáculo que tudo o que tem “pathos” gera), não podemos ficar indefinidamente nesta paralisia, quer em geral, quer em setores fundamentais, como é o caso da Justiça. Entre a inconsciência de um Bolsonaro/“boçalnaro” e o arrepio constante e aconchegante sob uma mantinha e rodeados de álcool e bolacha Maria, tem de haver um meio-termo, e a pouco e pouco temos de o procurar, e alguns têm especial responsabilidade nisso, e é-lhes exigida maior dose de risco. Mesmo deixando agora de lado a questão de saber se foi excessiva ou não a praticamente total paralisia dos tribunais decorrente do início da “coisa” (e eu acho que foi, e também acho que os profissionais forenses em geral se quiseram proteger em demasia, como se não tivessem deveres especiais, ao mesmo tempo que participavam nos aplausos à janela de quem não pôde mesmo resguardar-se – e nem todos os que mereciam foram aplaudidos, aliás), a verdade é que temos de nos interrogar: onde estamos agora, e onde nos vai isto levar?
E nem estou, aqui e agora, a pensar na questão económica, embora cumpra relembrar sempre – mesmo perante os apelos, tão verdadeiros, tocantes e certos, quanto demagógicos, lamechas e inconsequentes, de que não se pode perder nem uma vida – que quem não semeia não colhe, e que certas curas matam quase tanto ou tanto quanto o mal. Estou apenas (“apenas”) a falar dessa elementar necessidade que é a proteção de direitos, liberdades e garantias, estou a falar do acesso ao direito e aos tribunais, estou a falar da garantia jurisdicional efetiva, estou a falar até dessa tão apregoada “justiça em tempo”. Onde fica tudo isso, se esta letargia, se esta paralisia excessiva, e medrosa, com prazos suspensos, tribunais de pantufas, advogados esquecendo que têm um múnus especial, et cetera, continuar e continuar? Ainda que com conta, peso e medida, há que começar a sair disto, e fazer o que é possível. E há muita coisa que é possível ir fazendo, ainda que com uma certa dose de risco (ainda que muito menor, valha a verdade, do que a daqueles que aplaudimos à janela, ou a daqueles que nos asseguram o álcool, a bolacha Maria, a recolha do lixo, “inter alio”).
É que é apenas nos livros – mais a mais se forem de realismo mágico – que o amor resiste a tudo, até aos tempos de cólera, com reencontros felizes – após tanto penar e tantos anos – de Florentinos e Ferminas. Na vida real não é assim, salvo melhor opinião, e se não é para o funcionamento metafórico do coração, ainda menos é para o seu funcionamento real e verdadeiro, e de outros órgãos do corpo (e da alma), a começar por esses dois tiranos, o estômago e o cérebro. Que um “choque anafilático” não seja seguido de um “choque sético”. Em geral, e já agora na Justiça.