Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
01 de Outubro de 2018 às 20:28

Lizardo

Um opinador bestial aos olhos dos outros pode, facilmente, passar a besta quanto começa a decidir sobre as suas vidas, em ponto pequeno ou grande.

  • ...

Por estes dias, tenho tido entre mãos dois livros em que um dos temas principais - se o não é em todos os livros - é a solidão. Não tanto no seu sentido mais leve e corriqueiro - estar desacompanhado, estar só -, mas no sentido fundo de isolamento, de vazio, de consciência de singularidade, de intenso e cru confronto consigo mesmo e/ou de ausência de identificação com o outro ou com outros, seja em matéria emotiva, seja em matéria decisória. Falo de "Estrela Solitária", de Ruy Castro, biografia de Garrincha, um homem com uma vida excessiva e preenchida. Quem se lembraria à primeira vista de solidão? E no entanto... Pois não é da solidão corriqueira que se fala, mas sim - como em tantos outros casos - do confronto consigo e com os demónios do improvável génio futebolístico de pernas tortas, um confronto tentativamente afogado em álcool, mulheres, sexo e outras máscaras daquele profundo sentir-se só que ele, ao contrário do que fazia nos relvados, não conseguiu driblar. Falo também de "Eva", o mais recente Pérez-Reverte, com o seu Falcó, aparentemente o menos solitário dos homens, na sua vida aventureira, glamourosa e cheia. Mas nem tudo é o que parece, e ele sabe bem - além de que cada um pensar que é necessário é uma ilusão (bastando "cavalo e sabre") - que, como Eva lhe escreve em alemão na despedida, a última carta é jogada pela morte.

 

E a solidão, essa no seu sentido mais fundo, experimenta-se tanto mais quanto mais se tem de tomar decisões e, num contexto relacional, quanto mais poder se tem... Por maior que seja a partilha, a auscultação, a discussão, por melhores que sejam os mecanismos de decisão e controlo (em empresas ou instituições, por exemplo), os planos de sucessão, o saber ouvir, e tudo isso, há duas coisas que são inevitáveis - e sei-as bem, e muito para lá dos livros.

 

Uma: quanto mais se tem de decidir, e quanto mais poder (no sentido de ter de tomar decisões que afetam os outros), menos somos gostados e, também, mais identificação pessoal com os outros perdemos. O preço da decisão é sempre um certo vazio, que começa no exato momento em que o que nos é pedido deixa de ser a mera opinião (que é a mais fácil e soberba das coisas), passando para a decisão (que pode ser a mais difícil e sofrida das coisas). Um opinador bestial aos olhos dos outros pode, facilmente, passar a besta quanto começa a decidir sobre as suas vidas, em ponto pequeno ou grande.

 

E a outra coisa é que a decisão, sobretudo acerca de questões difíceis ou sensíveis, é sempre muito solitária, e - se for (se formos) séria - muito desafiadora de nós mesmos. Lembro-me sempre da criação literária que conheço que melhor espelha a solidão, que é a de Cardoso Pires em "A Balada da Praia dos Cães", o inspetor Elias e o seu fiel e silencioso (mas que Elias tem por absolutamente compreensivo) lagarto Lizardo. Quantas vezes não precisamos apenas da ilusão da compreensão, da sensação da identificação, de um pequeno Lizardo, aparentemente inerte sobre uma fina camada de areia, mas - mesmo que ilusoriamente - tão próximo, tão sabedor de nós e dos nossos pequenos ou grandes demónios, dos secretos mecanismos das nossas decisões e emoções, tão cúmplice - até do ridículo, mas enternecedor modo de Elias ajeitar, ao deitar, o cabelo que lhe resta. Lizardo não é mais do que o combate à cartada da morte de Falcó ou aos excessos do jogador de pernas tortas, mas pode ser muito, pode até, nas noites e nas decisões de Elias, ser tudo. Balada, da praia e dos cães: não é apenas um título, é uma genial metáfora, e é todo um caminho.    

 

Advogado

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio