Opinião
"La Loi de Prairial" ou escrito quase filosófico e com citações (Parte I)
À direita e à esquerda, foi só afinar pelo mesmo diapasão, usando essas ou criando outras "identidades", e matar mais e mais.
A Revolução Francesa, que nos legou a solidificação do inestimável património ideológico da liberdade, da igualdade e da fraternidade, e que cunhou em 1789 a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão - sémen (perdoem o sexismo da figura de estilo) de tantas coisas boas e fundamentais em matéria de direitos humanos -, também gerou o terror, e fê-lo quando começou, por um lado, a querer matar o regime antigo de morte matada e violenta e, por outro, a basear as coisas no maniqueísmo e nas "identidades". Usando o título do filme de Claude Lelouch - aquele que apresenta um magnífico e algo misterioso começo, salvo erro, ao som do "Bolero" de Ravel -, diria que a divisão do mundo em "Uns e os Outros" acaba sempre por dar mau resultado.
A mesma Revolução Francesa que fez germinar o princípio do mundo que hoje conhecemos no nosso pedaço de sociedade (tendencialmente) aberta (para citar um autor que bem alertou para os inimigos da mesma), também deu à estampa, e executou (literalmente, sem apelo nem agravo), "inimigos da revolução", "contrarrevolucionários", inimigos internos" e outras tantas e tão perigosas "identidades". A partir daí, à direita e à esquerda, foi só afinar pelo mesmo diapasão, usando essas ou criando outras "identidades", e matar mais e mais. É por isso que o preto-e-branco (apesar do seu apelo estético), o bem e o mal inscritos na pedra (não obstante a sua sedutora simplicidade) e uma certa lógica da "identidade" (mesmo que bem-intencionada) são muito perigosos.
Por mim, ou não fora Caravaggio o meu pintor favorito, prefiro, cada vez mais, o claro-escuro, as subtilezas, o esbatimento e a comunicação das fronteiras, o reconhecimento das ambiguidades e das contradições e, sobretudo, a consciência de que as diferenças se resolvem e se vivem, o melhor possível, pela máxima afirmação de duas coisas "sagradas": o equilíbrio possível entre opostos ou conflituantes (a concordância prática) e a legitimidade dos procedimentos, no terreno da vida pública, e a indiferença, no que toca à vida privada. O imperativo categórico de Kant é uma coisa belíssima, mas tem o enorme defeito de ser (apenas) formal, porque agir para com o Outro como se fosse uma máxima universal pressupõe sempre o passo prévio da definição do Outro (e do que não é Outro), e é aí que bate o (grande) ponto. Perguntem aos fantasmas de Robespierre, Hitler, Estaline, Francos, Videlas, Pol Pots e outros maiores ou menores aprendizes das mesmas "iluminações", e todos vos responderão que foram irrepreensíveis kantianos, pois, antes de aplicarem o belo imperativo, dividiram o mundo num branco alvíssimo e num carregado preto.
Por isso, e como se encontra inscrito na entrada das ruínas de Oradour-sur-Glane - uma localidade francesa que os nazis arrasaram e queimaram (com os seus habitantes) em 1944, e que visitei quando tinha frescos 16 anos e que me impressionou para sempre -, "Recorda-te". Recorda-te, por exemplo, de que, se não me engano, desde abril de 1793, quando da fundação do Tribunal Revolucionário, até 22 de Pradial do ano II (10 de junho de 1794), data da "Loi de Prairial", ou seja, em catorze meses, Paris conheceu a execução de mais de 2.500 pessoas. Mas, depois dessa nova lei, e até 9 de Termidor (27 de julho de 1794), ou seja, em menos de 50 dias, Paris assistiu à execução de cerca de 1.350 pessoas. Como diria o outro, um dos citados "iluminados", é apenas estatística, mas uma estatística que gela. (Continua.)
Advogado
Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico