Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
05 de Fevereiro de 2018 às 22:50

É uma mulher, mas não é ou talvez seja (ou o segredo de justiça na paleta de Cruzeiro Seixas)

A violação do segredo de justiça é um escândalo, e é crime. Ponto. A falta de energia e de resultados na investigação deste crime é uma vergonha. Ponto. A devassa obscena de operações judiciárias é inaceitável. Ponto parágrafo.

  • 3
  • ...

O surrealismo não é das minhas linhas artísticas preferidas. Mas com exceções, das quais destaco (O'Neill noutro continente) poemas de Mário Cesariny e trabalhos de Cruzeiro Seixas. Graças a amigos, os galeristas José Beja e Rui Beja, tenho uma pequena colagem em técnica mista sobre papel da autoria daquele último, felizmente ainda vivo. Como em toda a arte, podemos ver ali o que quisermos ou pudermos. Numa abordagem mais imediata, a obra retrata uma mulher. Mas se calhar não retrata, ou talvez retrate, depende de quem olha, como olha e quando. Essa é a magia da arte, exponenciada pela ambiguidade onírica do melhor surrealismo.

 

Tenho-me lembrado desta obra do mestre, ao escutar e ler alguns comentários sobre outros comentários relativos à violação escandalosa do segredo de justiça e à obscena quebra do recato que certas coisas da justiça devem ter, a propósito da chamada Operação Lex (mas podia ser de outras, porque o cenário repete-se). É assim o enredo: acontecem estas operações, sabe-se logo tudo, ou até antes, filma-se e fotografa-se em direto, e algumas pessoas mostram a sua indignação. Mas logo vêm outros criticar estes, não porque não tenham razão (porque é óbvio que a têm), mas com um argumento que tem a subtileza da patada do paquiderme e a fineza de espírito da pele do sapo: é que, dizem, quem se manifesta contra a quebra do segredo e contra a obscena devassa está é preocupado com o funcionamento do sistema de justiça, para já não falar nos alegados interesses, obscuros, que tem, representa ou protege.

 

Vamos ver se nos entendemos, e assim simples e cru, como Cesariny explicaria certas coisas às criancinhas: a violação do segredo de justiça é um escândalo, e é crime. Ponto. A falta de energia e de resultados na investigação deste crime é uma vergonha. Ponto. A devassa obscena de operações judiciárias é inaceitável. Ponto parágrafo. Quando digo e denuncio isto não estou preocupado com o funcionamento do sistema de justiça, antes pelo contrário, e pelo menos por três razões, tão singelas que até a minha sobrinha de apenas sete anos, mas inteligente e possuidora de boa-fé, perceberia. Primeiro, porque o que mais quero é que o sistema de justiça funcione, como cidadão e como advogado, e, passe a inestética imodéstia, já dei em 23 anos mais contributo para isso do que alguns arautos da "conspiração" e dos "processos de intenção". Segundo, e mais importante, porque o respeito pela lei faz parte (é o coração) do sistema de justiça, e quebrá-la põe em causa esse mesmo sistema. Meus senhores, enquanto não se percebe que os fins não justificam os meios, vive-se na infância democrática e jurídica, e quem diz que quem critica a violação do segredo está é a criticar o funcionamento do sistema também diria, se calhar, que quem criticasse a tortura para confessar estaria era preocupado com a eficácia e a rapidez na obtenção de resultados condenatórios, e não com a integridade dos torturados e com os princípios da civilização. Terceiro, e muito importante, porque o sistema de justiça para funcionar não precisa destas violações e destas obscenidades, antes pelo contrário. A não ser que se queira que ele "funcione" por caminhos ínvios, mas isso já não é justiça. Nestas coisas não é como nas obras surrealistas, em que uma coisa pode ser ou não ser uma coisa ou talvez seja. Aqui as coisas são o que têm de ser. O resto são outras artes. Ponto. De exclamação.

 

Advogado

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio