Opinião
Ciclável mundo novo
Lisboa é uma cidade ingrata, que não sabe adaptar-se à modernidade e insiste em ter um clima retrógrado, uma topografia teimosa, ruas estreitas e sinuosas e, ainda, as ancestrais e muito portuguesas dificuldades de planeamento e de visão integrada.
Que chatice, quer-se alindá-la e fazê-la ainda mais fixe, e ela a criar dificuldades, a não querer caber no postal ilustrado. No meio das obras que assolam o eixo Marquês-Campo Grande, aparece já o nítido esboço de vias para ciclistas, e num ameno domingo de setembro viu-se num desfile noticioso um evento de celebração de uma Lisboa ciclável (a expressão não é minha, era o nome da coisa, que vi filmada no luminoso e plano Terreiro do Paço). Traços de modernidade, e Lisboa ingrata e teimosa.
Por mim nada contra uma cidade ciclável, até porque sempre gostei de andar de bicicleta - era uma brincadeira em voga quando era miúdo, e o meio de deslocação de quem não tinha outro. Mas Lisboa teima e resiste, não muda de sítio, não desce das colinas, não se alisa. Lisboa não ruma ao Norte, não arrefece, não suaviza junho, não erradica julho, não acaba com agosto. E Lisboa não emigra, não muda para um país onde se planeie com método e visão integrada, onde não se comece as casas pelo telhado. Lisboa, a ingrata, parece querer mostrar que às vezes Portugal, como dizia o Eça, não é mais do que uma tradução em calão do francês.
No tal desfile noticioso, um turista disse que em Copenhaga 30% das pessoas se deslocam de bicicleta, e logo irromperam aplausos. Mas já foram a Copenhaga, e tomaram atenção? É que Copenhaga é para o plano, mas Lisboa é um sobe e desce constante, um labirinto de desníveis capazes de deixar qualquer dinamarquês a deitar os bofes pela boca, especialmente se não estiver de férias e tiver de ir para o trabalho ou levar os filhos à escola de bicicleta (e mesmo que a entrega dos petizes não seja na Penha de França). A topografia, essa desmancha-prazeres. E o clima, outro velho do Restelo, lembraram-se desse detalhe? Lamento relembrar, mas em Copenhaga não há temperaturas de derreter o comum dos mortais entre maio e outubro. Em Lisboa, há. A latitude é uma coisa antiquada, e fará do entusiasmado cidadão ciclável a caminho do trabalho um mar de suor, a reclamar que à chegada haja duche, toalha e uma muda de roupa. Dirão que em Copenhaga faz muito frio no inverno e isso não demove as bicicletas. É verdade, até já os vi a ciclar com neve, mas contra o frio há eficazes antídotos, já contra o estio português só se for circular em pelota.
E o moderno cidadão lisboeta, depois de dar ao pedal entre o Campo Grande e o Marquês (a descer é melhor), quando acaba a ciclovia faz o quê? Amarra a bicicleta a um poste e vai à vida? Faz triatlo por Alfama e Mouraria? Põe a bicicleta às costas e trepa colinas acima? Apanha o transporte público, claro está - dizem os entusiastas. Aliás, toda a gente apanhará o transporte público, e os carros sairão da cidade, como em Londres - outro exemplo fixe a importar. Mas já foram a Londres, e tomaram atenção? Já repararam na frequência com que lá passam os autocarros e o metro? Já viram a rede ferroviária e onde ficam as estações de comboio? Já olharam para a gestão integrada? Já pensaram que lá, se houvesse Campo de Ourique, Amoreiras ou Graça, haveria em cada um desses bairros pelo menos uma estação de metro? Lisboa não é Londres, nem Copenhaga. E Lisboa não é só o Chiado ou o Terreiro do Paço, enquadrados no sarau noticioso de um domingo luminoso.
Advogado
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