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03 de Setembro de 2018 às 20:15

A vida como ela é

Gostam de Nelson Rodrigues? Eu sim, e muito. Do Nelson Rodrigues dramaturgo, cronista, romancista de um romance só; homem paradoxal, excessivo e controverso, cru até ao limite às vezes, et cetera.

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Ruy Castro, na celebrada biografia, chamou-lhe anjo pornográfico, título genial. Há coisas na biografia de Nelson de que gosto menos. Mas, sinceramente, e então? Não o quero para amigo, mesmo que estivesse vivo, e estou-me nas tintas para a ética e a política dele. Gosto da arte e do homem que na arte se projeta. O resto é a vida dele, e em nada toca o que na arte dele me toca. Uns celebrarão a sua dramaturgia, mesmo que dita "desagradável", outros o seu cru (cruel?) romance "Casamento", alguns (muitos) a arte do conto breve e da crónica, quintessência do manejo genial da palavra, do pensamento e da emoção. Vários celebrarão tudo isso, e eu talvez me inclua nestes, voltando a Nelson Rodrigues mais e mais, sobretudo à medida que penetro irremediavelmente nos entas e aprendo melhor a arte do paradoxo, do desapontamento e do valor brilhante das coisas pequenas e dos momentos. Mas, por sobre tudo, celebro um título dele, precisamente "A vida como ela é".

 

Vamos à Wikipédia - esse supremo avatar moderno da informação rápida (e às vezes traiçoeira) - e diz algo assim: "A Vida como Ela é... é uma série de contos escritos por Nelson Rodrigues, um dos maiores escritores brasileiros do século XX, durante os anos de 1950 a 1961. Era o nome da coluna diária do escritor na Última Hora. O proprietário do jornal queria que Nelson retratasse uma história da vida real. As crónicas geralmente giravam em torno do adultério, do pecado, dos desejos e da moral, causando escândalo."

 

Para mim o génio está, sobretudo, na simplicidade crua do título, independentemente do conteúdo de cada crónica ou conto breve, sejam melhores ou menos bons. A vida como ela é: a afirmação óbvia, obviamente ululante - mas o óbvio precisa sempre de ser dito e demostrado -, de que a vida não é o que dela queremos, esperamos, desejamos, et cetera.

 

A vida é o que é. É como ela é. Ponto. É isso uma tragédia? Talvez, mas apenas no sentido de que procuramos incessantemente que ela seja outra coisa, mas ela insiste em ser como é. É assim. Talvez Ruy Castro lhe devesse ter chamado, em vez de pornográfico, o anjo trágico. Embora pornográfico, no sentido que creio que Ruy Castro lhe deu e é o certo, também não esteja nada mal, pois vejo na arte e na vida de Nelson Rodrigues, como aliás vejo em muitas outras, várias coisas movidas pelos efeitos daquela frase certeira e desapiedada de Rosa Montero, que é qualquer coisa como isto "a carne está triste e já li todos os livros". É o que é, a vida (ou o mundo) é o que é - como, aliás, creio que se chama a biografia de outro escritor poderoso, que admiro muito, embora também para amigo talvez não me servisse, V. S. Naipaul.

 

Mas então - poderá, perplexo, perguntar o leitor mais fixado no objeto principal deste jornal e na efémera rigidez energética e temática que marca as rentrées - , não deveria eu estar a escrever aqui sobre economia, gestão e afins? Primeiro, não deveria, necessariamente. Segundo, mas não estou, afinal? A economia não é sobre a vida como ela é? E para gerir, mesmo num necessário ímpeto transformador, não é absolutamente essencial, antes de mais, saber como as coisas - e sobretudo - as pessoas são? E, já agora, conhecer bem o paradoxo, o desapontamento, a tragédia, e até uma certa feição crua e pornográfica da vida. Pelo menos mal não faz, e até creio que é bem necessário.

 

Advogado


Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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