Opinião
O que sucedeu ao voto dos emigrantes é uma falta de respeito, uma vergonha e uma trapalhada
No seu espaço de opinião habitual na SIC, o comentador Marques Mendes fala sobre a evolução da pandemia, o próximo Governo, os ataques informáticos, a possível invasão da Rússia à Ucrânia, entre outros temas.
PANDEMIA – O ESTADO DA ARTE
- A Covid, enquanto doença, não acabou nem acabará tão cedo. Mas, na cabeça das pessoas, a pandemia já acabou. Os portugueses já interiorizaram que vão viver com a doença durante vários anos, tipo gripe. Como sempre, nesta pandemia, os cidadãos andam à frente do Estado.
- De facto, só agora é que o Estado começa a preparar a passagem da fase de pandemia para a fase de endemia. É esta uma das razões da próxima reunião do Infarmed. Ao que apurei, haverá quatro grandes temas a debate:
Mudança do modelo de vigilância
- Instituto Ricardo Jorge está a estudar o tema
- Hoje a vigilância é sobre os infetados
- No futuro, distinguir-se-á entre: doença grave, moderada e sem sintomas
- Regras de isolamento podem mudar
- O próprio boletim diário da DGS pode mudar
Vacinação
- Fim de Fevereiro/Março termina vacinação atual
- Restarão os infetados (vacinação Maio/Junho)
- O que se vai discutir agora é uma eventual 4ª dose
- Provavelmente apenas para os cidadãos de risco, no Outono
- Portugal só avançará depois de consenso na UE
Testes e novos medicamentos
- Ideia é mudar política de testes
- Objetivo: concentrar testes apenas nos doentes com sintomas
- Novos medicamentos: definir política de compras
- São medicamentos especialmente caros
- Essenciais sobretudo para idosos e doentes com comorbilidades
O ATAQUE À VODAFONE
- O ataque à Vodafone suscita algumas reflexões sérias:
- Primeira: o que está a suceder em Portugal nas últimas semanas em matéria de ataques informáticos é normal? Segundo apurei junto dos especialistas de investigação, não é normal. É considerado mesmo um caso atípico na Europa. Primeiro, pela visibilidade dos alvos (no caso vertente, empresas altamente mediáticas); segundo, pelo poder das vítimas (a Vodafone é uma grande multinacional). Não é habitual!
- Segunda: por muito que nos custe, o pior ainda pode estar para vir. O ataque a serviços do Estado. Até agora, só tivemos ataques a grandes empresas privadas. As que mais investem em segurança informática. Mas no futuro os alvos podem ser os serviços públicos. E sabe-se que o Estado não é das entidades que mais recursos investe em segurança informática.
- Terceira: porquê esta recente concentração de ataques informáticos? A razão principal tem a ver com o teletrabalho. Com a pandemia, o recurso ao teletrabalho aumentou muito; muitas vezes os computadores utilizados são-no ao mesmo tempo para trabalho e lazer; amiúde são usados por mais do que uma pessoa; dessa forma o risco da facilitação é maior; daí até às credenciais irem parar às mãos erradas é um passo curto.
- Quarta: quais são as motivações destes ataques? Até ao fim do ano passado, as motivações eram essencialmente financeiras. A busca de dinheiro, através de um pedido de resgate. Mas os casos conhecidos em 2022 não têm motivações financeiras. Podem até ter motivações geopolíticas. No caso da Vodafone, o cenário de uma intervenção russa está a ser equacionado. É cedo para tirar conclusões. Mas a suspeita de motivações geopolíticas torna tudo ainda mais inquietante.
- Uma reflexão final. Os ciberataques são, infelizmente, o futuro que nos espera. Essa é uma verdade de La Palice. O que já não é de La Palice é a necessidade de investir a sério em segurança informática. Fala-se muito em transição digital; investe-se muito em informatização e digitalização; mas é urgente passar a falar mais e a investir mais em segurança informática.
ATENTADO TERRORISTA?
- O país ficou atónito com a notícia da iminência de um atentado terrorista que a PJ abortou. Iminente ou não, há duas boas conclusões a tirar:
- Primeiro, quanto á excelência da cooperação internacional. É bom saber que a cooperação internacional ao nível policial e dos serviços secretos funciona. Muitos ataques terroristas no mundo inteiro são evitados graças á cooperação internacional.
- Segundo, quando á eficácia e profissionalismo da PJ. Outro dado de extrema importância. Uma vez mais a PJ foi eficaz e competente.
- Noutro plano, há uma polemica virtuosa no ar: como se comunica este tipo de ocorrências? A PJ fez bem em comunicar o facto?
- Primeiro, o ideal é não ter de comunicar. Muitos ataques terroristas no Mundo são abortados sem que haja notícia. Evita-se alarme social.
- Segundo, a ter de comunicar, é preferível uma comunicação oficial das autoridades que uma comunicação oficiosa, através de fuga de informação para a imprensa. A primeira gera menos alarme que a segunda. E não se sabe se, neste caso, o comunicado da PJ, não visou antecipar-se à iminência de uma fuga de informação na imprensa.
- Terceiro, o uso da palavra terrorismo. É preciso muito cuidado com o uso desta expressão. Há, pelo menos, duas versões distintas de terrorismo. Há a versão tradicional de terrorismo. A que envolve actos violentos com motivações ideológicas, políticas ou fanatismo religioso (caso do Daesh, do Estado Islâmico, da ETA); e há a versão de terrorismo da lei portuguesa, que, mal ou bem, é diferente. Significa a perpetração de certos actos violentos, sem que se exijam tais motivações. Esta separação de águas é essencial para evitar alarme social e insegurança.
- Finalmente, muito cuidado com a associação de doenças a actos violentos (é o caso da síndroma de asperger). Esta associação não é verdadeira, é injusta e penalizadora de muitas pessoas e famílias.
NOVO GOVERNO
- Governo em marcha. Entretanto, há sinais positivos e problemas no horizonte:
- Concertação social: o primeiro-ministro quer, logo a seguir à investidura do Governo, negociar na Concertação Social um acordo de médio prazo sobre produtividade, competitividade e salários. Sinal positivo.
- Debates quinzenais: António Costa deu abertura para os retomar. Outro sinal positivo. Nunca é tarde para corrigir um erro.
- Em qualquer caso, falta o essencial: saber se o novo governo vai mesmo ser um governo reformista. Essa é a questão nuclear. Entretanto, sobre reformas, vale a pena ler o excelente ensaio de Vítor Bento no Observador e o magnífico artigo de Correia de Campos no Público. Duas reflexões inteligentes sobre a necessidade e a dificuldade de reformar.
- Na semana passada apresentei as vantagens de um governo de maioria. Hoje, é importante destacar alguns dos seus maiores problemas.
- Primeiro: os problemas económicos. A crise da Ucrânia; as consequências da subida da inflação; e a provável mudança da política monetária do BCE. Todos eles são problemas sérios.
- Segundo: a longevidade governativa. A maioria absoluta começa agora. Mas este PM já leva 6 anos de poder. Se chegar ao fim, serão quase 11 anos de governo. Muitos anos de poder geram normalmente tiques de arrogância, autoritarismo, insensibilidade e impaciência. Não se vai notar ainda em 2022. Mas virá nos anos seguintes.
- Terceiro: a ambição europeia de António Costa. O PM sempre teve o desejo de ocupar um cargo europeu. Se o desejo se mantém não sei. Mas há duas coisas evidentes: António Costa, depois deste resultado, sai muito reforçado na UE; só que, se quiser mudar-se para Bruxelas em 2024, tem de abandonar o Governo e isso pode dar origem a crise, dissolução e eleições antecipadas. Outro problema.
- Quarto: o referendo à regionalização. Há uma possibilidade séria de a regionalização voltar a ser chumbada em referendo. A causa é mais popular entre políticos e elites que entre o povo. Ora, se houver um chumbo no referendo, este é um problema sério para o PS. A não ser que o PSD esteja do mesmo lado e amorteça a derrota.
O VOTO DOS EMIGRANTES
O que sucedeu com o voto dos emigrantes é uma falta de respeito, uma vergonha e uma trapalhada.
- Primeiro, uma falta de respeito. Incentivam-se os emigrantes a votarem. E depois anula-se a grande maioria dos votos que chegaram. Pior desconsideração pelos emigrantes era impossível.
- Segundo, uma vergonha da parte dos partidos e do Governo. Perante o problema potencial – exigência do cartão de cidadão – de duas uma: ou se mudava a lei, para facilitar o voto; ou se fazia no estrangeiro uma grande campanha de esclarecimento. Afinal, nem uma coisa nem outra.
- Terceiro, uma trapalhada sem discrição. A poucos dias das eleições, os partidos fizeram um acordo para evitar a obrigatoriedade da apresentação do cartão de identificação. Só que este acordo tinha um problema: era um acordo que violava a lei. Logo, um acordo ilegal. Bonito exemplo que os partidos dão!
UCRÂNIA – GUERRA À VISTA?
- A invasão da Ucrânia está por dias? Os EUA dizem que sim. E os sinais são nesse sentido.
- Primeiro, as diligências diplomáticas têm sido várias mas não têm tido resultados visíveis.
- Segundo, a Rússia tem, na fronteira com a Ucrânia, forças militares mais do que suficientes para um ataque em força (150 mil homens).
- Terceiro, os apelos das últimas horas por parte de vários países à retirada da Ucrânia dos seus nacionais indiciam a iminência do ataque.
- Mas atenção: estão previstas para os próximos dias visitas a Moscovo de Bolsonaro e do Chanceler Alemão. É difícil conciliar estes encontros com um ataque militar à Ucrânia.
- Havendo invasão da Ucrânia, concentremo-nos em três questões essenciais:
- A NATO não terá intervenção militar. A Ucrânia não é membro da NATO. Nenhum estado-membro da NATO accionará o artigo 5º do Tratado da Aliança. Mas pode haver intervenções pontuais para retirar nacionais dos respectivos países (cidadãos dos EUA são cerca de 35 mil).
- A resposta do Ocidente – EUA e UE – será económica, será brutal e será de molde a asfixiar a economia russa. Falta saber é se os oligarcas russos não se preveniram já, retirando os seus capitais para destinos seguros.
- A Rússia seguramente retaliará com o gás. E obviamente terá efeitos na Europa: metade das importações de gás que a Europa faz são da Rússia. Mas, em sentido inverso, esta retaliação terá também uma brutal perda de receita para as depauperadas finanças da Rússia.
- Finalmente, mesmo sem conflito militar, a Rússia já está a alcançar alguns dos seus objectivos: primeiro, já dificilmente a Ucrânia entra na NATO; segundo, já destruiu economicamente a Ucrânia; terceiro, já contribuiu para atrasar a recuperação na UE; quarto, pode introduzir nos EUA uma tensão desfavorável a Biden, no ano em que o Presidente tem eleições intercalares difíceis, com o risco do regresso do trumpismo.