Opinião
Marques Mendes: O PSD não deve cometer o erro de criticar a política de contas certas
No seu espaço de opinião habitual na SIC, o comentador Marques Mendes fala sobre o aumento do custo de vida, dos apoios do Governo e da nova austeridade e faz o balanço dos primeiros 100 dias de Luís Montenegro como presidente do PSD, entre outros temas.
A INFLAÇÃO E O CUSTO DE VIDA
1. Estão finalmente a ser pagos os apoios às famílias e aos pensionistas. Já não era sem tempo. A verdade é que a situação do custo de vida se agravou, já depois das decisões do Governo no início de setembro. Vejamos o essencial:
· Cabaz alimentar – o cabaz alimentar, iniciativa da Deco Proteste, teve desde o início da guerra um aumento de 17%. É o maior aumento até hoje. Mais do dobro da inflação prevista pelo Governo.
· Bens essenciais – entrando um pouco mais em detalhe, há alguns conjuntos de bens essenciais que tiveram aumentos ainda maiores: em particular o peixe (+21%), a carne (+20%) e frutas e legumes (+18%).
2. Aqui chegados, importa salientar três questões relevantes:
· Primeira: o pacote de medidas é necessário, mas não é suficiente. A situação é de emergência social. Como diz o Expresso, já há pessoas a roubar nos supermercados por causa da fome. É bom que o Governo comece a pensar em novo programa de apoio para o início do ano.
· Segunda: a lógica dos apoios tem de ser mais seletiva: não se deve apoiar a todos por igual, mas apoiar mais os que são mais pobres e vulneráveis. Há dias um Ministro dizia-me que a sua mulher teria direito a este apoio de 125€/mês. Com todo o respeito, a mulher de um Ministro não é propriamente uma pessoa socialmente vulnerável.
· Terceira: o apoio das IPSS e Misericórdias é decisivo. Só que a sua capacidade de intervenção está diminuída. Estas instituições têm despesas brutais que antes não tinham e que as estão a asfixiar. É o caso das despesas de energia. O Governo não poderia permitir que IPSS e Misericórdias passassem para o mercado regulado de energia, à semelhança do que sucedeu com os particulares?
REFORMADOS PAGAM MAIS IRS?
1. Já quanto aos reformados com pensões baixas as notícias não são boas. Segundo o Negócios e a consultora PWC, uma boa parte dos reformados vai ter um agravamento fiscal pelo facto de receber, repartida por dois anos, a pensão a que tinha direito em 2023. Sobretudo por duas razões: por causa do mínimo de existência, melhorado para 2023; e pelo facto de em 2022 não ter havido atualização dos escalões de IRS. Se a pensão fosse, toda ela, recebida em 2023 o regime fiscal seria mais favorável aos pensionistas. Não são todos, mas são milhares. Vejamos três exemplos que me foram preparados pela PWC:
· O caso de uma pensão de 700€ mensais. Segundo a consultora PWC, o titular desta pensão terá no imposto final um agravamento de 162€.
· O caso de uma pensão de 750€. Segundo a mesma consultora, neste caso o agravamento fiscal será de 38€.
· O caso de uma pensão de 800€. Aqui, segundo a PWC, haverá um desagravamento fiscal de 93€.
· Conclusão: alguns milhares de pensionistas, sobretudo com pensões mais baixas, além de serem penalizados nas actualizações a partir de 2024, também vão ser penalizados em IRS. Sem o saberem, vão pagar mais imposto do que pensavam.
2. Este agravamento fiscal não é justo. É mesmo muito injusto. Afinal, o desdobramento por dois anos da pensão de 2023 acaba por ser um bom "negócio" para o Estado, mas um mau "negócio" para milhares de pensionistas. O Governo, para ser uma pessoa de bem, tem uma obrigação ética e moral a cumprir: introduzir no OE para 2023 uma norma que garanta neutralidade fiscal. Que garanta que qualquer pensionista afetado fiscalmente por este desdobramento da pensão será compensado do mesmo valor pelo Estado.
CRÉDITO À HABITAÇÃO E APOIO AUTÁRQUICO
1. A situação dos beneficiários de crédito à habitação é cada vez mais precária. Exemplificando com um empréstimo de 125 mil euros (a 30 anos, Euribor a 6 meses. Spread 1,25%), os números começam a ser assustadores: a prestação da casa, em outubro, já aumentou 34%% em relação ao início do ano; em janeiro próximo o aumento será de 51%; e em julho de 2023 um aumento de 67%. Muito preocupante.
· Aqui, o Governo está a ter dois pesos e duas medidas. Teve apoios concretos para os inquilinos, e bem: o congelamento das rendas a partir dos 2% de aumento. Já no crédito à habitação os apoios são claramente insuficientes: facilitação do reembolso antecipado de empréstimos; flexibilização das retenções na fonte; e alargamento dos prazos de empréstimos. Tudo é útil, mas não resolve o essencial. Nem representa qualquer apoio financeiro ou fiscal.
2. Aqui chegados, há uma questão essencial no combate á carestia de vida e na ajuda às famílias: a intervenção do Estado é insubstituível, mas o apoio das autarquias é essencial: complementam o apoio do Estado e são muito eficazes pela sua cultura de proximidade. Não podendo referir todas, sublinho dois bons exemplos autárquicos: o da CM de Matosinhos (apoiando as famílias mais carenciadas, no arrendamento, na redução do IMI, na energia e no plano alimentar); e a CM de Lisboa, através do Programa Saúde 65+, destinado a apoiar os maiores de 65 anos em serviços de saúde gratuitos, médico gratuito e medicamentos gratuitos.
GOVERNO PREOCUPADO COM A AUSTERIDADE?
1. O Governo está naturalmente preocupado com a crise e com a sua dimensão. Mas está sobretudo preocupado com a credibilidade do seu discurso. Por isso, anda agora por todo o país a explicar o OE. O problema político é este:
· António Costa, quando chegou ao poder, prometeu acabar com a austeridade. Com ele, António Costa, não haveria mais austeridade. Essa tinha sido a escolha de Passos Coelho, mas não era a dele, António Costa – era este o discurso oficial do PS.
· Só que agora tudo mudou. A promessa não está a ser cumprida. A austeridade, com esse ou outro nome, voltou. Que o digam a classe média, os pensionistas e os funcionários públicos. E esta realidade pode afetar a credibilidade do discurso do PM e do Governo.
· A questão só se coloca porque em 2015 António Costa fez demagogia. A austeridade não é uma escolha. É uma necessidade. Ninguém faz austeridade por prazer. Só quando as circunstâncias o exigem. Não havia necessidade de tanto exagero.
2. O governo fez com França e Espanha um acordo sobre interligações eléctricas. Matéria que já tinha sido objeto de um outro acordo em 2014, que agora cai. O PSD e vários especialistas contestam o acordo. Dizem que o anterior era melhor. Há ainda muito a explicar. Desde logo há três perguntas essenciais:
· O acordo de 2014 era bom. A prova é que não foi contestado por ninguém, nem pelo governo. Assim, porque é que o PM o deixou cair em vez de bater o pé em Bruxelas?
· Em 2014, havia o envolvimento da CE e do BEI. Por causa do financiamento. E agora? Aparentemente, nada está assegurado.
· Em 2014, Portugal garantia 2 interligações elétricas, através dos Pireneus. Com este acordo as duas interligações aparentemente caem. Se assim for, Portugal perde muito. Perde a oportunidade de ter no futuro energia mais barata. É assim? O governo deve esclarecer.
MONTENEGRO – 100 DIAS DE LIDERANÇA
1. Luís Montenegro começou bem o seu mandato: uniu o partido, é assertivo no discurso, foi credível a fazer acordo com o Governo no aeroporto e está a subir lentamente nas sondagens. Mas a sua vida é difícil. Há 7 anos, desde 2015, que o PSD não ganha uma eleição nacional.
2. O líder do PSD tem pela frente um problema, um desafio e uma vantagem.
a) O problema é o OE para 2023. É um OE mais fácil de contestar à esquerda. Mesmo assim, o PSD não deve cometer o erro de criticar a política de contas certas. Seria dar o dito pelo não dito. Não é credível. O PSD deve colocar as suas críticas noutros dois pontos: a falta de ambição do OE no plano económico; e a desigualdade no plano social.
b) O desafio maior que Montenegro tem é recuperar dois grupos eleitorais fortes que o PSD perdeu no tempo da troika: os funcionários públicos e os pensionistas. Não é fácil. Mas ultimamente o Governo ajudado.
c) A vantagem de Montenegro está no calendário e nas circunstâncias políticas: pode ser primeiro-ministro em 2026.
· Primeiro: com eleições gerais só em 2026, tem tempo para preparar uma alternativa como deve ser.
· Segundo: já não vai ter António Costa como adversário. O primeiro-ministro sairá da liderança do PS antes das próximas legislativas. Ora, isso faz toda a diferença. Disputar eleições sem António Costa é mais fácil.
· Terceiro: em 2026, o PS estará profundamente desgastado. Neste momento já começa a estar. Imagine-se em 2026, ao fim de 11 anos de governação. É o que sucede com ciclos longos. Foi também assim no cavaquismo.
A CONFUSÃO NO REINO UNIDO
1. Há uma explicação simples para o que se passa no Reino Unido: a fraqueza, a insensatez e a incompetência dos seus três últimos Primeiros-Ministros: Theresa May era fraca; Boris Johnson um insensato; Liz Truss uma incompetente.
2. Acho, porém, que há uma explicação mais séria e mais profunda: o Brexit. O Brexit "matou" politicamente o Partido Conservador e não gerou qualquer nova esperança para os Britânicos.
· Em 2016, David Cameron fez um referendo sobre a presença do Reino Unido na UE. Objetivo: resolver as divisões dentro dos Conservadores. O efeito foi precisamente o contrário. Daí para cá aumentou a divisão e a instabilidade dentro dos Tories. Três Chefes do Governo; seis Ministros das Finanças; várias fações dentro do partido.
· O Brexit seria, segundo os seus defensores, a forma de o Reino Unido reforçar o seu crescimento económico. Nada disso está a suceder. Na recuperação pandémica, o PIB britânico tem crescido menos que o PIB da Zona Euro e que o PIB dos EUA.
· Finalmente, o Brexit iria voltar a fazer do Reino Unido uma potência global, com uma pujança internacional mais forte. Nada disto ocorreu. Ainda esta semana houve um episódio humilhante para o Reino Unido: Joe Biden demarcou-se da política económica e financeira britânica.
3. Três apontamentos finais: o regresso de Boris Johnson seria brincadeira de mau gosto. O ex-ministro Sunak é a solução mais credível. Em qualquer caso, a crise britânica só se resolverá com eleições gerais. Agora não vamos ter. Os Conservadores vão evitá-las. Mas, enquanto elas não se realizarem, a crise disfarça-se. Não se resolve.