Opinião
Marques Mendes: "no plano económico, [o OE] é irrealista nas metas e mais do mesmo nas políticas"
Marques Mendes, no seu comentário habitual na SIC, fala do acordo do Orçamento do Estado para 2023, do acordo de rendimentos, dos casos de abuso sexual na Igreja, da guerra, entre outros temas.
ORÇAMENTO PARA 2023
- Este OE tem duas partes distintas: uma parte para consumo externo, a outra para o país. A primeira, a parte financeira, não é feita a pensar nos portugueses, mas sim a pensar nos mercados financeiros. É a parte da forte redução do défice e da dívida. Aqui, António Costa e Medina parecem Passos Coelho. Será que resolveram imitar o ex-primeiro-ministro? NÃO. É o fantasma da bancarrota. O primeiro-ministro e o ministro das Finanças têm medo dos mercados, da subida de juros e até de uma nova bancarrota. Fogem desse risco como o diabo da cruz. Logo, é um OE prudente. O que é um elogio.
- Na outra parte do OE, essa virada para o país, o Governo tenta fazer a quadratura do círculo. Tenta agradar a toda a gente. Sem grande sucesso.
- No plano social, é um OE desigual. Faz um esforço para proteger os mais pobres. Mas desprotege dois sectores que o PS mais apoiou nos seus primeiros anos de governo: funcionários públicos e pensionistas. Será que o Governo mudou de orientação? NÃO. A razão é outra: o dinheiro não dá para tudo.
- No plano económico, é irrealista nas metas e mais do mesmo nas políticas. Quanto ao irrealismo o FMI já o disse. Quanto às políticas temos a mesma falta de ambição, a mesma ausência de causas. Não há um objetivo mobilizador. Uma esperança para o futuro. Uma certa desilusão.
3. Finalmente, há a parte política, com duas curiosidades:
- É um OE que seria impossível de fazer se houvesse geringonça. Nunca PCP e BE o aprovariam. O que significa que, se neste momento ainda houvesse geringonça, o país, com a guerra e com a crise económica, era ingovernável.
- Este é um OE mais ao centro que à esquerda. O que significa que é mais fácil de contestar pela oposição de esquerda que pela oposição à direita. É sempre assim em tempos de crise.
DÉFICE E DÍVIDA
É a grande marca identitária do OE. É a maior válvula de segurança do país. Corresponde aos dois dados mais positivos da ação governativa:
- Primeiro: em 2022 atingiremos um valor da dívida similar a 2011, o período pré-troika: 115% do PIB este ano contra 114,4% em 2011. Isto só é possível porque houve de 2022 em relação a 2021 uma redução histórica de 10,5 pp. Muito á boleia da inflação, mas positivo.
- Segundo: em 2023 vamos deixar o pelotão da Grécia e da Itália (o pior pelotão da UE em matéria de dívida) e vamos passar a integrar um pelotão intermédio e mais credível (Espanha, França e Bélgica), o que nos garante maior segurança em relação aos mercados.
Estas duas mudanças são indiscutivelmente positivas:
- Primeiro: o nosso grande calcanhar de Aquiles é a dívida.
- Segundo: em tempo de incerteza e instabilidade internacional, o problema é ainda maior. É preciso dar sinais de confiança aos mercados. Não é por acaso que o ministro das Finanças, na conferência de imprensa do OE, passou vários minutos a falar claramente para os mercados. O medo de um descalabro financeiro é grande.
OE MELHORA RENDIMENTOS?
- Vê-se que o Governo tem o desejo genuíno de minimizar as perdas de rendimentos. E uma vontade clara de apoiar os mais vulneráveis. Vê-se no desagravamento fiscal do 2º escalão do IRS; na atualização do IAS em 8%; na atualização acima da inflação dos salários mais baixos da função pública.
- Mas depois há a verdade inconveniente que o governo tenta esconder: é que fica muita gente de fora deste objetivo social. A classe média, os pensionistas e a generalidade dos funcionários públicos são penalizados. São milhões de pessoas. Vejamos o caso destes dois grupos sociais:
- Pensionistas: no acumulado de 2022/23 têm aumentos de cerca de 9,9% (aumento inicial, meia pensão este ano, pensão de 2023). Mas a inflação acumulada destes dois anos é de 11,4%. Logo, há uma perda de rendimento. Perda que se agrava a partir de 2024. A base de atualização das pensões passará a ser mais baixa. São vítimas.
- Funcionários públicos: no acumulado de 2022/2023 têm aumentos salariais, em média, de 4,5% (0,9% em 2022 e 3,6% em 2023). Com uma inflação acumulada em 2 anos de 11,4%, a perda de rendimento na função pública é enorme. Novamente vítimas.
- Aqui há um regresso da austeridade. No tempo da troika, houve cortes nominais de salários e pensões. Agora, há cortes nos salários e pensões através do imposto escondido que é a inflação. No final, o resultado é o mesmo: perda de rendimento. Porventura não havia alternativa. Portugal não é a Alemanha. Temos limitações orçamentais sérias. Mas não vale a pena negar as evidências e usar truques ou habilidades. É preciso falar verdade aos portugueses.
VAMOS TER MAIS INVESTIMENTO?
- O aspeto mais irrealista e negativo deste OE é a promessa do ministério das Finanças de um forte aumento do investimento público como motor para o crescimento. As intenções são boas, mas a prática recente não ajuda.
- Investimento público: o histórico deste Governo é mau. Desde 2016 até hoje, apesar das promessas, o Governo executou muito menos do que orçamentou. Assim: em 2016 menos 21% do que o orçamentado; em 2017, menos 16%; em 2018, menos 16%; em 2019, menos 20%; em 2021, menos 12%; em 2022, já com Medina, a expectativa é de menos 14%.
- Plano de Recuperação e Resiliência: um atraso grande. O valor disponível é de 16,6 mil milhões de euros. O valor executado até hoje é de apenas 824 milhões. Em 24% do tempo que já passou desde a aprovação do PRR só gastámos 5% dos fundos disponíveis.
- Portugal 2020: estamos em risco de perder fundos. Este programa termina no fim de 2023. Da dotação global (27 mil milhões de euros) ainda faltam executar 6,2 mil milhões. Até agora, tem-se executado à média de 245 milhões por mês. Para não perdermos fundos, é preciso nos 15 meses que faltam 385 milhões por mês. Será possível?
- Portugal 2030: está todo no papel. O acordo de parceria com a UE foi assinado com um ano de atraso. O Regulamento Geral dos Fundos já leva 13 meses de atraso. A nomeação das autoridades de gestão ainda nem sequer está feita e já leva 10 meses de atraso.
- É com este panorama que o ministério das Finanças quer fazer crescer o PIB? Não sei se Medina está a tentar enganar-nos a todos ou se está a tentar enganar-se a si próprio. Uma coisa é certa: com a burocracia que existe o risco de falhar é enorme.
MARCELO E A PEDOFILIA NA IGREJA
- Na política como na vida, todos temos dias mais felizes e menos felizes. Acontece com todos. Terça-feira passada foi um dia infeliz para o Presidente da República. Teve um momento infeliz e uma declaração infeliz. Toda a gente o reconheceu. Incluindo o próprio. Não devia ter acontecido, mas aconteceu.
- Será que o Presidente da República tinha intenção de desvalorizar os casos de abusos sexuais na Igreja? Eu, sinceramente, acho que não. Marcelo é um combatente dos direitos sociais. Mas não foi essa a imagem que passou. Temos que ser honestos na análise: a perceção pública foi a de que quis ajudar a Igreja e desvalorizar o número de casos. E essa perceção pública é má.
- Por isso, o Presidente da República fez bem em vir publicamente pedir desculpa. Tinha de o fazer. É um gesto de humildade. A humildade não é habitual num político, mas é importante. É uma atitude de dignidade, reconhecendo uma falha. Falhar é humano. É sobretudo um gesto de solidariedade para com as vítimas de atitudes intoleráveis de membros do clero. Os que abusaram e os que esconderam os abusos. Uns e outros não têm perdão.
- Vamos ao fundo da questão: este assunto não pode nunca ser desvalorizado.
- Primeiro: este não é um problema estatístico. É um problema humano. Como disse o Papa Francisco, um único caso já é gravíssimo.
- Segundo: um caso de pedofilia na sociedade é grave. Na Igreja é ainda mais grave. A obrigação da Igreja é proteger as crianças. Não as violentar.
- Terceiro: o dever de um católico não é desvalorizar. É ser mais exigente. Pelo dever de coerência que deve existir entre a doutrina e a prática.
- Quarto: a hierarquia da Igreja devia dar o exemplo. Infelizmente alguns Bispos não dão. Razão tem Laborinho Lúcio quando diz: este é um problema na Igreja. Mas se a Igreja não colaborar passa a ser um problema da Igreja.
MINISTROS SOB SUSPEITA?
- Acho bem que o Presidente da República tenha pedido à Assembleia da República que volte a debater a lei das incompatibilidades. Não se perde nada. Mas também não me parece que tenha qualquer sucesso. Achava mais eficaz que, perante casos concretos de dúvida e suspeita, se voltasse a pedir um novo parecer de interpretação ao CC da PGR. Doutra forma, este clima de suspeita mantém-se.
- Há nestas matérias um brutal clima de hipocrisia entre os partidos. Quando estão na oposição defendem a maior transparência do mundo. Tudo tem de ser transparente, é o que dizem. Quando chegam ao Governo, acham logo absurdas todas as leis de transparência que antes aprovaram. É o cúmulo da hipocrisia.
- Esta lei de incompatibilidades pode ser sempre melhorada. Embora qualquer alteração não tenha efeitos retractivos, convém recordar. Mas a verdade de fundo é esta: se um membro do Governo (ou outro titular de cargo político) tem uma participação social relevante numa empresa, essa sociedade não deve fazer negócios com o Estado. Doutra forma, a suspeita de favorecimento é permanente.
- Se o membro do Governo, ao assumir funções, está nessa situação, tem um caminho fácil: vende, liquida ou suspende a sua participação. Tão simples quanto isto. A solução não é passar o tempo a mudar de leis. Muito menos mudar á boleia de casos concretos. A solução é interpretá-las corretamente e cumpri-las.
O ESTADO DA GUERRA
- Primeiro ponto: o cada vez maior isolamento internacional da Rússia. Esta semana, Putin teve mais duas derrotas: a primeira, na AG da ONU. Mais uma votação esmagadora contra as anexações na Ucrânia; a segunda, e mais brutal: a Rússia foi expulsa do Conselho da Europa, por ser considerada um estado terrorista. Foi pouco falada cá dentro, mas é uma decisão brutal para Putin.
- Segundo ponto: o reequilíbrio militar. Tivemos durante meses a fase da ofensiva russa; tivemos nas últimas semanas uma bem-sucedida contra-ofensiva ucraniana; temos agora uma terceira fase, com um maior equilíbrio entre as partes. Os avanços ucranianos continuam a dar-se, sobretudo na zona de Kherson, mas agora de modo mais lento e reduzido.
- Terceiro ponto: mantém-se o impasse negocial. Não há ainda quaisquer condições para uma negociação de paz. Não tenhamos grandes ilusões: para existir esse ambiente negocial ele terá de passar inevitavelmente por conversas diretas prévias entre Biden e Putin. Só que muito provavelmente esse momento ainda está distante. O tempo ainda é de resistência e paciência.
- Último ponto: é preciso fazer pedagogia de valores em torno da guerra. O pior período da guerra vai de agora até março. É o inverno. As consequências económicas e sociais podem abalar a opinião pública europeia. Para o evitar, não chega falar de economia. É preciso fazer pedagogia na defesa dos valores que se jogam nesta guerra. Os valores da liberdade, da democracia, da paz, da soberania dos povos. Infelizmente, os Chefes de Estado e de Governo têm negligenciado esta pedagogia. Incluindo em Portugal. Oxalá não venham a arrepender-se.