Opinião
Marques Mendes: na justiça, "parece que o futebol é um mundo à parte"
As habituais notas da semana de Marques Mendes, no seu espaço de comentário na SIC. O comentador fala sobre o coronavírus, o caso Rui Pinto, e Angola e a lavagem de dinheiro, entre outros temas.
O CASO RUI PINTO
Apesar de o caso Rui Pinto estar muito "contaminado" pela clubite futebolística, importa, com isenção e objectividade, reflectir: a justiça está a agir bem ou mal?
- Primeira questão: a justiça está a agir bem ao levar Rui Pinto a julgamento. A verdade é que ele cometeu vários crimes. Isto é objectivo. Face à lei, entrar nos computadores de qualquer pessoa é crime. É como assaltar uma casa.
- Pior: ele está também acusado de tentativa de extorsão. Acusado de ter tentado obter dinheiro em troca de documentos que pirateou.
- Ainda pior: ele teve o atrevimento de entrar nos emails da PGR e do Juiz Carlos Alexandre. Isto é gravíssimo. Qual era o serviço público que estava a prestar? Qual o interesse público que estava a defender?
- Segunda questão: então os dados revelados pela Luanda Leaks não servem para nada? Claro que servem. Servem para a justiça poder abrir investigações que antes não estavam abertas. É o que está a suceder. Face à lei, a única coisa que não pode é usar as provas obtidas ilicitamente. Mas pode seguir as mesmas pistas e chegar aos mesmos documentos por outra via. Logo a denúncia informativa tem importância e valor. Não fica em saco roto.
- Terceira questão: onde a justiça age mal e fica em maus lençóis é que nalgumas investigações já devia ter ido mais longe. O caso das investigações no domínio do futebol (clubes e dirigentes) é paradigmático:
- Se houver uma suspeita sobre um político ou um empresário, investiga-se rapidamente e em força. Se for um clube grande ou um dirigente do Benfica, FCPorto ou Sporting é tudo a passo de caracol.
- Se houver uma suspeita sobre um presidente de um clube de futebol, normalmente só se actua quando ele sair de funções. Foi assim com Vale e Azevedo. É assim, de resto, que eles aproveitam para se eternizarem no poder. Isto, sim, é inaceitável no curso da nossa justiça. Parece que o futebol é um mundo à parte. Um Estado dentro do Estado.
CORONAVÍRUS
Esta questão tem uma dimensão de saúde pública – a mais preocupante – mas também duas outras: a dimensão política e a dimensão económica.
- Saúde pública – Uma nota de preocupação e uma nota de confiança:
- Nota de preocupação – Infelizmente, este surto do coronavírus está ainda em fase ascendente. Todos os dias há mais casos que no dia anterior. Ninguém verdadeiramente sabe quando atinge o seu pico e quando começa a curva descendente.
- Nota de confiança – O facto de se conhecer o vírus e o facto de ele já estar a ser estudado nos laboratórios, associados aos avanços no domínio da ciência e da biologia molecular dão-nos a esperança de a curto prazo surgir uma vacina para este surto preocupante.
- Dimensão política – Neste caso de política internacional. A China não é um país qualquer. É a grande potência emergente. Este surto de coronavírus é mau para a imagem internacional da China. É colocar a China nos radares internacionais pelas más razões. Daí o cuidado e a discrição que todos os países estão a colocar no processo de retirada da China dos seus cidadãos nacionais. Cuidado e discrição para não humilharem as autoridades chinesas.
- Dimensão económica – Esta situação vai afectar a economia chinesa e por arrastamento a economia europeia e mundial. A China é a segunda maior economia do mundo. Este surto afecta o consumo da China, as exportações chinesas e as suas importações do exterior. O crescimento chinês pode este ano ficar abaixo dos 6%, o pior resultado desde 1990. No caso da Europa basta pensar no seguinte: a China é, já hoje, o maior fornecedor da Alemanha e o seu terceiro maior cliente. E a Alemanha é o motor da economia europeia!
ANGOLA E A LAVAGEM DE DINHEIRO
- Diz o Expresso que Isabel dos Santos já está a negociar com o Estado angolano. PGR angolana nega. O que dizer?
- Se ainda não estão a negociar é uma questão de tempo até entrarem em negociações plenas. É inevitável.
- Há semanas que aqui digo que este "conflito" entre Isabel dos Santos e Angola só se resolve por via da negociação. Ambas as partes precisam de um acordo.
- Entretanto, continua a polémica sobre os Bancos e o branqueamento de capitais. São vários os casos de Bancos – com capital angolano – acusados de fazer "lavagem" de dinheiro. Há uma semana, a SIC emitiu uma reportagem onde três Bancos (todos ligados a capital angolano) são acusados de não cumprir as leis sobre branqueamento de capitais.
- Primeiro – Acho que o país precisa de uma decisão exemplar – fechar um Banco que não cumpre as regras sobre branqueamento de capitais, retirando-lhe a respectiva licença bancária. Situações excepcionais requerem decisões excepcionais.
- Segundo – Só uma decisão exemplar, desta natureza, pode ter dois efeitos essenciais: por um lado, um efeito dissuasor; por outro lado, o efeito de defender a imagem da generalidade da Banca. É que a maior parte dos Bancos cumpre as regras. Os que não cumprem são a excepção. O justo não deve pagar pelo pecador.
- Terceiro – É pena que a área de supervisão do BP, apesar de ter melhorado, continue ainda muito conservadora. Devia ser mais interventiva e corajosa.
IVA DA ELECTRICIDADE
- Primeira reflexão – Isto é o populismo à solta. Uma competição pela popularidade. Uma guerra para ver qual dos partidos é mais amigo dos consumidores. Todos querem ser populares e ficar bem na fotografia. Vejamos:
- O PSD quer baixar o IVA para o consumo doméstico e não para os consumos das empresas. Mas, se o PSD fosse coerente com o seu discurso devia fazer o contrário. Se o PSD diz, e bem, que a prioridade é o crescimento económico, então a energia devia baixar em primeiro lugar para as empresas. Seria reduzir os chamados custos de contexto. Só que é mais popular fazer o contrário. Logo, a coerência vai para as urtigas.
- O PCP e o BE dizem que é preciso aliviar os custos das famílias mais carenciadas. É verdade. Mas ao baixar o IVA para todos ao mesmo tempo – ricos e pobres – os ricos estão a ser mais beneficiados que os pobres. Não é socialmente justo. Neste plano, a solução do Governo – baixar o IVA em função do consumo – é mais correcta e mais justa.
- Segunda reflexão – O Governo ameaça veladamente com uma crise se a medida for aprovada pela oposição. Isso é do domínio da ficção política. O Governo não vai abrir qualquer crise e, se abrisse, seria fortemente penalizado. Esta situação não é igual à da crise dos professores. Nem de perto nem de longe. Na questão dos professores, a impopularidade e o oportunismo eram óbvios. Aqui, a medida é popular e algum exagero da oposição não justifica uma crise.
- Terceira reflexão – Tenho muitas dúvidas que a medida seja aprovada. Que PSD, PCP e BE juntem os seus votos. Mas se for aprovada, o Governo só tem dois caminhos: primeiro, respeitar a decisão. É o que se faz em democracia; depois, recorrer da decisão junto para a Comissão Europeia e para os Tribunais – é que a legalidade da decisão é altamente duvidosa. No final, tudo não passará de uma tempestade num copo de água!
JOACINE E O LIVRE
- Consumou-se esta semana o divórcio entre o Livre e a deputada Joacine Katar Moreira. O Livre retirou a confiança política à deputada.
- Três breves conclusões:
- Ambas as partes saem mal nesta novela. Primeiro, não tiveram a humildade para aproximar posições e superar divergências. Depois, desrespeitaram o voto dos eleitores. Terceiro, não souberam estar à altura das suas responsabilidades políticas. Ela, Joacine, é uma egocêntrica deslumbrada e impreparada. Ele, o Livre, um partido que perdeu a sua credibilidade.
- No futuro, em próximas eleições, todos vão pagar um preço elevado – a deputada Joacine Katar Moreira não vai conseguir ser reeleita; o Livre, por sua vez, quando fizer novas escolhas de deputados, dificilmente será levado a sério.
- Finalmente, esta é mais uma das provas de que alguma superioridade política, ética e intelectual dos novos partidos em relação aos antigos partidos é um logro e uma ficção. Afinal, os novos partidos têm tantos ou mais defeitos que os antigos. Em vez de superioridade para criticar os outros exige-se humildade para se reconhecer falhas dentro da própria casa.
BREXIT
- Se o RU vai ganhar ou perder fora da UE só o futuro o dirá. Para já, a UE fica mais fraca, mais desequilibrada e mais vulnerável.
- Mais fraca – Tem menos um Estado. Tem menos PIB. Tem menos poder económico e militar.
- Mais desequilibrada – A UE tem vivido de um certo equilíbrio entre países continentais e países atlânticos. Ora, acabou de sair o mais forte dos Estados atlânticos.
- Mais vulnerável – Até agora havia sempre novos Estados a querer entrar na UE e ninguém a querer sair. Agora, mudou o paradigma e abriu-se o precedente. A vulnerabilidade está instalada.
- Para o RU há pela frente três desafios essenciais:
- Primeiro desafio – Conseguir fazer um bom acordo comercial com a UE. Até agora fez-se o acordo de divórcio. Agora é preciso regular a relação futura. E se este acordo não estiver concluído até final deste ano voltará o fantasma do Brexit duro.
- Segundo desafio – Que direcção vai tomar o RU? Vai alinhar com os EUA, a China ou a UE? Ou, como se diz, vai querer transformar-se uma grande Singapura, altamente liberal e competitiva no espaço global? É uma hipótese – com o risco sério de agravar desigualdades internas e assim frustrar os votantes do Brexit.
- Terceiro desafio – A desintegração política interna. A Escócia e a Irlanda do Norte votaram fortemente para ficar na UE. Logo, os próximos riscos são:
- O risco de a Escócia se tornar independente por via da realização de um novo referendo.
- O risco da reunificação das duas Irlandas.
- Em suma, o PM inglês vai ter de lidar com uma crise existencial no RU, com duas das nações históricas a ameaçar dissolver o RU.