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Deixem o IVA em paz: é tempo de guerra

Não faz sentido tratarmos restaurantes de bairro com restaurantes do centro de Lisboa e do Porto. A miopia pseudodemocrática de chegar a todos ao mesmo tempo terá apenas uma consequência: na tentativa de ajudar a todos, não ajudaremos ninguém.

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Os restaurantes estão desesperados. Ofendidos com o Governo e frustrados com a certeza de mais meses e meses a conta-gotas. O ministro da Economia diz que percebe, que se preocupa e que está a fazer tudo o que pode. Quem tem razão? Desta vez, ninguém. Mas como a restauração emprega centenas de milhares de pessoas e afecta os negócios de milhares de outras, o problema é grave e as mudanças são urgentes. Os restaurantes têm de mudar de bandeiras; o Governo tem de mudar de velocidade.

Começo pela responsabilidade dos profissionais, a menos falada. É uma opinião pouco popular no meio, como se pode imaginar, mas parece-me evidente que tanto as maiores associações do sector como os chefs-activistas têm-se entrincheirado numa guerra justa embrulhada em argumentos errados. Não tanto pelas causas, que são mais ou menos óbvias, mas pelo timing. A tremenda falta de pontaria temporal. E a prova está na exigência que encabeça todos os discursos, todos os cartazes: a descida do IVA.

Já em Março, quando as empresas precisavam de um regime de lay-off como pão para a boca, a redução do IVA andava no ar. O país arrancava para um confinamento que prometia ser duro, sem uma data de reabertura no horizonte, mas ainda assim havia quem achasse que descer o IVA é que era. Se achei estranho na altura, hoje acho bizarro.

Os turistas desapareceram, o teletrabalho esvaziou bairros inteiros, os clientes que fazem parte dos grupos de risco estão fechados em casa e o resto da população ou está em recolher obrigatório ou paralisada com medo. É neste contexto, sem clientes nem consumo, que vamos pedir ao Estado para descer os impostos... do consumo? Que diferença faz o Estado cobrar 6, 13, ou 23% de nada?

Claro que quando o mundo reabrir portas, quando os restaurantes voltarem a funcionar e quando o dinheiro for suficiente para pagar contas, há poucas medidas mais eficazes do que esta para rapidamente ajudar os negócios a reerguer-se. Mas nunca agora.

A própria redução da TSU, a causa número dois de todos os protestos, é muito questionável na forma e na oportunidade. Tendo em conta que uma mudança deste tipo só teria impacto a médio prazo, é razoável esperar que o mundo da restauração possa ter um tratamento completamente diferente dos outros sectores afectados pela pandemia? “Então alarguem o benefício a todos”, ouvi num debate televisivo. E o país pagaria alegremente uma conta social do tamanho da rica Alemanha?

O tempo que vivemos, de genuíno desespero, justifica respostas emocionais a todas estas perguntas. Torna compreensível a raiva, a falta de serenidade e até alguns palavrões (nunca a violência). Mas a bem dos milhares de famílias dependentes da restauração era importante que quem dá a cara por estas causas se focasse nos resultados e não tanto nos likes.

Precisamos de resultados simples, concretos e urgentes, como os apoios a fundo perdido. Neste preciso momento (e sublinho preciso), grande parte da restauração só conseguirá sobreviver se o Governo injectar dinheiro directamente nas empresas, em velocidade recorde, ignorando todo o tipo de entraves burocráticos e recorrendo apenas às declarações fiscais – tempo de guerra oblige.

O critério desse apoio tem de ser desproporcionalmente proporcional às perdas, ou seja, dando prioridade aos negócios que perderam mais de 70% ou 80% de faturação, porque é a partir dessa linha vermelha que a sobrevivência passa a estar dependente da sorte. É triste dizer isto, mas quem perdeu 20, 30 ou 40% está numa situação de privilégio e terá de ser preterido em função de quem mais perdeu. E outros critérios haverá, naturalmente, todos eles difíceis de escolher. Mas é justamente para fazer escolhas que elegemos representantes.

Ao mesmo tempo, é preciso cuidar do factor tempo com pinças. O momento é sensível e janeiro vai ser tarde demais para quem está a acumular dívidas todos os dias, enquanto lida com a pressão de empregados, fornecedores e senhorios. Por isso é tão perigoso anunciar planos de apoio, seja de que valor for, e depois demorar semanas a passá-los ao papel. Sim, tal como aconteceu com o programa apoiar.pt.

E finalmente é preciso estabelecer diferenças entre os negócios do sector. Como há dias alertou Massimo Bottura, um dos chefs mais famosos do mundo, não faz sentido partir para esta guerra misturando hotéis, restaurantes, bares e discotecas... tudo diferente, mas enfiado no mesmo saco. Como não faz sentido tratarmos restaurantes de bairro com restaurantes do centro de Lisboa e do Porto. A miopia pseudodemocrática de chegar a todos ao mesmo tempo terá apenas uma consequência: na tentativa de ajudar a todos, não ajudaremos ninguém.

No final de tudo isto, aconteça o que acontecer, vão sempre desaparecer muitas empresas. Tão certo quanto doloroso. A questão é quantas. E quais. Pelo número astronómico de empregados (em risco de caírem no fundo de desemprego), pelo contributo essencial que têm para o resto da economia, e pela importância turística que vão ter de ter na retoma do turismo, os restaurantes são uma prioridade nacional. Ignorá-los, ou combatê-los politicamente, vai sair-nos muito mais caro do que salvá-los.

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