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Quantos nómadas valem uma Autoeuropa?

Este perfil de consumidor, que será profusamente estudado no futuro, traz consigo novos gostos – sobretudo pelo que é saudável, sustentável, espiritual – e um poder de consumo quase idêntico ao de um turista, mas durante mais tempo. Por isso não é emigrante nem imigrante.

Brian Chesky, fundador e CEO do Airbnb, acaba de revelar um facto que pode mudar o mundo. Num podcast da revista Monocle, em abril, anunciou que mais de 20% das reservas feitas na sua plataforma de alojamento local já são para estadias longas. Ou seja, uma em cada cinco pessoas procura uma casa (e um destino) para passar mais de um mês fora de casa. Se pensarmos que no mundo normal, sem covid nem restrições, a Airbnb regista mais de seis milhões de reservas por ano (e que é só um entre milhares de operadores), é fácil perceber a revolução que aí vem. Uma revolução que Portugal tem todas as condições de agarrar e que, utilizando a métrica favorita do país, tem o tamanho de várias Autoeuropas.

Ora, como bom português começo pelos problemas de tudo isto. Em primeiro lugar, a crítica óbvia: nada disto é novo. Já se fala de nómadas digitais desde os tempos da Maria Cachucha, em mil artigos, conferências e documentos oficiais. O que é verdade. Há, no entanto, uma diferença grande entre adivinhar os humores do mercado e ter um facto mensurável, como este, oferecido pela empresa líder do sector, listada em bolsa e, por isso mesmo, fortemente escrutinada pelas declarações dos seus responsáveis. A diferença entre futurologia e realidade.

Dito de outra maneira, agora já não é um balão de ensaio ou uma expectativa longínqua. Agora há receitas provadas. O que me leva ao passo seguinte: sendo a procura objectiva, o financiamento para projectos que explorem o nomadismo digital tem de passar a ser menos arriscado e, portanto, mais barato. Onde antes existia uma limitação óbvia, agora existe (espero) um incentivo evidente para alimentar as boas ideias — e as más — com capital fresco.

A seguinte dúvida recai no próprio autor, Chesky, diabolizado por qualquer activista antiturismo, que normalmente o acusa de ter empurrado a dona Almerinda para fora de Alfama, onde vivia desde 1927, e de onde saiu com centenas de milhares de euros nos bolsos, mas certamente infeliz. Ora, o Airbnb é um dos maiores casos de sucesso do mundo graças a uma visão muito certeira da realidade. Tem provado a resiliência do turismo talvez melhor do que qualquer grupo que navega neste sector há décadas e permitiu, com a promoção do alojamento local, dar a milhares de donas Almerindas deste mundo o rendimento que nunca imaginaram ter. Além de que em algumas cidades, como Lisboa e Porto, foi a solução mágica que permitiu aumentar a oferta de camas de um dia para o outro, sem que as cidades tivessem de depender dos grupos hoteleiros locais estacionados no século passado.

Em Janeiro de 2020, o Airbnb tinha tudo pronto para se atirar à bolsa, quando o flagelo pandémico começou. E depois caiu de cabeça, como todos nós, reagrupou-se e adiou a aventura. Porém... porém acabou por avançar quando ainda não se via a luz, em Dezembro, e desde então já anunciou péssimos resultados, quebras imensas e despedimentos massivos. E mesmo assim, pasme-se, os analistas continuam a pensar que vai ser das empresas turísticas que melhor vai recuperar no mundo sem máscaras. Em parte, dizem eles, justamente por causa destes novos nómadas.

A dúvida final sobre o fenómeno é, no entanto, a que me parece mais interessante: será que estamos só perante um fenómeno circunstancial empolado pelo contexto da pandemia? Ou a covid foi o gatilho que deu escala ao que já estava na forja e agora ganhará mais adeptos e velocidade? É a dúvida onde melhor sinto os conflitos geracionais do nosso mundo. Porque só a olhos muito desligados da realidade pode escapar o elefante que está na sala: a enorme mudança cultural que este turismo representa.

Há 40 anos, quem tinha oportunidade de viajar escolhia o seu destino entre uma lista muito limitada de 10 ou 20 cidades icónicas. Ser sofisticado significava conhecer Londres, Paris, Roma e cidades que tais. Depois, vieram as “low-cost”, as reservas digitais, e a lista de destinos cresceu a ponto de já ser normal partilhar um Instagram de Ljubljana ou ir a um festival de jazz no interior da Polónia.

Até que chegou isto, a residência temporária. O turismo pós-millennial, liderado por uma geração que procura muito mais do que museus e miradouros. Quer uma experiência de vida. Pertencer a outra casa. Fazer amizades para a vida. E depois caminhar para outro destino.

Este perfil de consumidor, que será profusamente estudado no futuro, traz consigo novos gostos – sobretudo pelo que é saudável, sustentável, espiritual – e um poder de consumo quase idêntico ao de um turista, mas durante mais tempo. Por isso não é emigrante nem imigrante. Pode vir para uma universidade ou para uma empresa local, mas o que realmente procura é a vivência simples da rua. O computador é a sua única ligação a casa. Está na cidade de acolhimento para viver e gastar.

E Portugal como fica nisto? Lisboa e Porto eram duas cidades destacadíssimas na corrida global do turismo quando foi dado o tiro que suspendeu o movimento da Terra. Agora que o mundo regressa e com esta enorme oportunidade pela frente, é preciso agir com inteligência para reactivar essa posição no pódio mundial. Como? Ajuda muito ter cidades com história e vida própria, não cópias manhosas do que os outros fazem — parece fácil, mas exige muito mais do que parece.

 

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