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Os enganos

A governação americana, mas também a grega, a portuguesa ou a britânica, apenas para falar em democracias, tem forçado a reflexão sobre o papel do engano e da dissimulação na política.

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A dissimulação - pretender ser-se algo diferente do que se é - é parte da natureza humana. E nalguns contextos pode mesmo ser vista como uma qualidade. Um jogador de futebol que faz boas fintas pode ser descrito como um dissimulador. E nesse caso é uma qualidade. O poeta "que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente" é um fingidor plenamente dedicado à sua arte, o que é um elogio. O gestor que esconde os seus propósitos de empresas concorrentes pode estar a defender os interesses dos seus acionistas e demais "stakeholders". Isso pode ser uma qualidade, manifesta, por exemplo, no aforismo "o segredo é a alma do negócio". Já a dissimulação perante clientes, colaboradores, acionistas, ou o Fisco é vista de forma menos positiva embora diferenciada por cada sociedade ou indivíduo.

 

Maquiavel, em "O Príncipe", foi um dos primeiros a ter a coragem de escrever sobre as potencialidades do abuso da boa-fé pelos poderosos. Numa das passagens mais famosas escreve "… todos admitem que um príncipe é digno de elogio e admiração quando honra a sua palavra e se comporta com integridade em vez de dissimulação. No entanto, a nossa experiência mostra que os príncipes que fizeram coisas grandiosas preocuparam-se pouco em manter a sua palavra e usaram de vários estratagemas para enganarem os outros de forma ardilosa, e estes príncipes tendem a ganhar aos que acreditaram na sua palavra."

 

A possibilidade do engano e da mentira como estratégia só funciona na medida em que todos precisamos de uma linguagem comum, em que as palavras têm um significado próprio e que não é adulterado com a mera passagem do tempo. Mudar o significado das palavras ou das frases é uma das formas mais comuns de dissimulação no espaço da política, mas também da vida empresarial. E é obviamente mais grave quando originada no topo pelas elites. A mentira só é possível como estratégia quando as pessoas esperam que lhes digam a verdade.

 

O que levanta o seguinte problema. Porque é que as pessoas continuam a esperar que os governantes lhes digam a verdade quanto sentem que são enganadas com frequência?

 

Uma das respostas possíveis é que há uma grande assimetria entre dizer a verdade e induzir um engano. Em princípio a verdade, sobre os objetivos da governação, por exemplo, é única embora possa ser multifacetada ou subjetiva. Mas a dissimulação pode tomar muitas formas e envolver apenas ligeiras adulterações da verdade. Por vezes não ditas de forma explícita, mas explorando apenas os enviesamentos cognitivos dos ouvintes crédulos.

 

Acresce que, um governante hábil na arte do engano apenas o fará algumas vezes e sobre alguns assuntos e na margem do estritamente necessário. O engano é estratégico, mas não é usado permanentemente como a verdade. Como alguém já observou, apesar das dificuldades que o Presidente Trump tem em comunicar de forma clara e temporalmente consistente, não podemos inferir que ele não diz, por vezes, coisas verdadeiras. E mesmo, como alguns dos seus defensores já tiveram a coragem de dizer, que a maioria das coisas que ele diz são verdade!

 

Em suma, o engano e a dissimulação como estratégia política só funcionam se forem usadas de forma suficientemente rara. Mas mesmo nestas circunstâncias não é necessariamente merecedora de encómio.

 

Deveríamos por isso ser mais prudentes em elogiar os poderosos pelos resultados alcançados. Quer os sucessos eleitorais. Quer os sucessos económicos ou orçamentais. Quer ainda os sucessos empresariais. O sucesso obtido com recurso ao engano, por oposição ao mérito ou ao esforço, mina a confiança das pessoas no significado das palavras e na credibilidade das instituições.

Professor na Universidade Católica Portuguesa

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

 

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