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21 de Fevereiro de 2017 às 19:51

Toda a gente mente e não se fala mais nisso

"A verdade básica da condição humana é a de que toda a gente mente. A única variável é sobre o quê." Assim fala o Dr. House no episódio 21 da primeira temporada da série televisiva que ostenta o seu nome.

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Na constatação de que "toda a gente mente" o velho Gregory não encontra apenas a razão da sua fabulosa misantropia. Ela é também o princípio fundamental do seu método sherlockiano de investigação médica: para percebermos de que sofre um paciente, a primeira coisa a fazer é desconfiar do próprio paciente.

 

Compare-se o cepticismo criador de House com o cinismo sonso de muitos políticos, comentadores e jornalistas que têm desvalorizado o facto de o Governo andar a tomar os portugueses por parvos no assunto da administração da Caixa Geral de Depósitos. Já toda a gente suspeita de que o Governo mente constante e publicamente. Há é quem não o aceite; e há quem diga que não vale a pena investigar, porque, que diabo!, todos os políticos mentem.

 

House utiliza o seu pessimismo antropológico para lhe iluminar a verdade. Por cá, há quem tenha deveres democráticos de esclarecimento, mas utilize o mesmo pessimismo, simplesmente, para encolher os ombros.

 

É óbvio que António Costa e Mário Centeno não são os primeiros a ter este comportamento politicamente impróprio. Mas, se não quisermos sacrificar a democracia num pântano de complacência e opacidade, algum dia teremos de começar a dizer "basta".

 

Este não é o principal problema da Caixa? Concordo. Está muito longe de o ser. A questão é precisamente essa: este não é sequer um problema da Caixa. É, mais do que isso, uma manifestação de um problema sobre o exercício do poder democrático, que se revelou a propósito do processo de formação da administração e de recapitalização da Caixa. Discuti-lo não inviabiliza essa recapitalização. Não impede que o banco desempenhe as suas funções. Não desvia a concentração da nova equipa de Paulo Macedo.

 

Se devemos agradecer ao Governo o exemplo de ter colocado o banco público nas mãos de uma administração politicamente independente e profissionalmente preparada (em rigor, a Comissão Europeia não daria outra hipótese), também devemos exigir que se conheça o que a conduziu, tão prematura e estrondosamente, à porta de saída.

 

Desde o início da polémica que houve muito por esclarecer. Sobre o que o Governo prometeu e não cumpriu. Sobre se comprometeu o Estado com algo moral ou politicamente ilegítimo. Sobre a transparência democrática da negociação. A tudo isto o Governo respondeu de forma tão atabalhoadamente evasiva que é difícil não concluir que nos anda de facto a tentar enganar.

 

As democracias têm instrumentos para se defenderem deste previsível comportamento dos governos. A imprensa livre, desde logo. E, claro, os parlamentos. Infelizmente, na nossa Assembleia da República tem decorrido o deplorável espectáculo de uma maioria a terraplenar os direitos potestativos da oposição, sem os quais os parlamentos não conseguem sindicar realmente os governos e a democracia não passa da "tirania da maioria", contra a qual nos alertava Tocqueville.

 

Desde quando é que é do foro privado uma mensagem de telemóvel trocada entre o ministro das Finanças e um administrador de uma empresa pública, sobre a gestão dessa empresa? Toda a correspondência entre ambos, nesse tema, é do interesse público - seja por carta, e-mail, SMS, pombo-correio ou sinais de fumo.

 

A não ser que se ache que o conteúdo será sempre falacioso e irrelevante, porque, lá está, toda a gente mente.

 

Advogado

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