Opinião
Quem são os "moderados"? (II)
A ideia de uma "ditadura libertária transitória", com um "ditador liberal", é obviamente uma fraude intelectual. Não só a liberdade económica é por natureza incompatível com a ditadura como, logicamente, não há para amostra qualquer experiência de sucesso.
Na semana passada escrevi sobre a necessidade de dar um sentido útil à expressão "moderados", que tem sido tão utilizada - e de forma tão indiscriminada e equívoca - no debate sobre a ascensão dos populismos e a crise das democracias liberais.
O conteúdo que sugeri é este: o moderado é aquele para quem a forma de atingir um determinado objectivo político é tão importante quanto o objectivo em si mesmo. O processo é tão relevante quanto a substância, porque tem igualmente um valor político e moral intrínseco. Ou seja, o processo é, também, a substância.
No que mais interessa para a discussão, o que isto significa é simples: para um moderado, qualquer objectivo só é defensável se for possível em ambiente democrático, com mínimos olímpicos de respeito pelas liberdades individuais. Para um radical, os fins justificam sempre os meios. Só o objectivo final importa. Se se lá chega por vias mais liberais ou mais autoritárias, é indiferente. Se for preciso, subverte-se ou subalterniza-se a democracia.
No artigo da semana passada dei exemplos recentes do pensamento radical à esquerda, mas terminei dizendo que essa mentalidade proto-revolucionária também tem feito caminho à direita. Onde isso se nota com mais evidência é no caso de Jair Bolsonaro - e na forma como alguma direita tem aderido à figura (incluindo em Portugal).
Relativamente aos outros exemplos de "populistas" em ascensão, podemos dizer com facilidade que eles são a antítese do consenso liberal que a direita defendeu nas últimas décadas. O que vemos em Trump e Le Pen, ou nos governos italiano, húngaro e polaco, é o triunfo do nativismo e do proteccionismo económico nacionalista.
Com Bolsonaro, a história é diferente. Uma das pedras de toque do seu programa é o projecto económico liberal do superministro Paulo Guedes: privatização de empresas estatais, contenção orçamental, abertura da economia brasileira ao mundo. Ou seja, a direita liberal pode recusar Bolsonaro por causa dos seus impulsos autoritários e da indecência inultrapassável de muitas das suas posições (e muito bem), mas não pode fugir à constatação de que, no tema essencial das opções de política económica, Bolsonaro parece um dos seus.
Guedes estudou na Escola de Chicago e é um admirador de Friedrich Hayek e da Escola Austríaca. É uma espécie de produto acabado do liberalismo económico, e por isso é mais fácil de ver como da direita "do costume" (a "elite globalista" que os novos nacionalistas tanto gostam de denunciar) do que como um populista anti-sistema.
O problema é que Guedes parece seguir a cartilha hayekiana com todo o pormenor, incluindo o capítulo infame no qual Hayek defende que uma ditadura pode ser necessária, ainda que temporariamente, para implantar o liberalismo. Hayek escreveu-o em várias ocasiões. Foi com isso que defendeu, por exemplo, Salazar e Pinochet.
A ideia de uma "ditadura libertária transitória", com um "ditador liberal", é obviamente uma fraude intelectual. Não só a liberdade económica é por natureza incompatível com a ditadura como, logicamente, não há para amostra qualquer experiência de sucesso.
No entanto, a ilusão permanece viva nos corações de alguns liberais. Em declarações recentes publicadas pelo Financial Times, Paulo Guedes diz com clareza que quer aplicar no Brasil a receita de Pinochet e que finalmente o país cumprirá o desígnio da sua bandeira - unir a ordem ao progresso: "A ordem é Bolsonaro, o progresso são as ideias liberais."
Significa isto que Bolsonaro vai implantar uma ditadura no Brasil? Não. Mas o que aqui está em causa não é só o velho desejo, comum em muitos intelectuais, de aplicar as fórmulas ideológicas com o menor atrito possível da política: é mesmo a ideia da política como triunfo da vontade, indiferente às pedras no caminho com que os moderados se deixam atrasar.
É a tese radical de que devemos ser mais escrupulosos com os fins do que com os meios. Uma tese que, quando vem de um liberal, não deixa de ter o seu quê de cómico. É necessária a força do Estado para impor o anti-estatismo? É preciso diminuir as liberdades para implantar um regime liberal? Que raciocínio extraordinário.
Advogado
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