Opinião
Procurei o fascismo em Serralves, mas não o encontrei
Do que se sabe, este não é um caso de censura da obra artística de Robert Mapplethorpe, nem de puritanismo insólito. O que é, pelo contrário, é um caso em que a ignorância, que sempre foi atrevida, se mostra especialmente afoita.
Quando lhe perguntam o que gosta de fotografar, William Eggleston costuma responder: "A vida, hoje." Eggleston é o meu fotógrafo favorito e o responsável pelo clique do meu gosto pela fotografia. A técnica intuitiva e natural, a fluidez e a complexidade imperfeita das imagens, a banalidade dos objectos, o uso triunfal da cor - por tudo isto Eggleston é o responsável pela minha predilecção pela fotografia enquanto documentário da vida quotidiana e da beleza da trivialidade.
Por oposição, nunca tive grande interesse por fotógrafos como Robert Mapplethorpe. Mapplethorpe até pode fotografar genitália em "close-up" e práticas sexuais extremas. Mas a sua fotografia é demasiado bem-comportada para o meu gosto. Demasiado perfeccionista, demasiado presa à sacralidade do preto e branco, demasiado virtuosa e formalista, metódica e repetível, premeditada e controlada. No fundo, demasiado previsível e aborrecida.
Ainda assim, fui à primeira oportunidade ver a exposição do americano em Serralves. Fui nos primeiros dias, admito, por causa da celeuma em torno da organização e da suposta "censura" com que a administração da Fundação terá vitimizado a curadoria do director artístico João Ribas. Sinceramente, se a controvérsia tem algum interesse - e recorrendo àquele princípio "egglestoniano" -, é porque ela é precisamente uma boa fotografia do que é a vida, hoje.
É paradigmático dos dias que correm que a polémica tenha explodido, com manifestações à porta de Serralves e a proverbial onda de indignação (às vezes mais postural que genuína) na imprensa e nas redes sociais, logo que o director artístico se demitiu, sem necessidade de oferecer contraditório às declarações de Ribas. É a ilustração de como hoje o mais curto rastilho pode originar as mais sanguíneas discussões.
A ideia que se gerou é que a administração de Serralves proibiu a exposição das fotografias mais "chocantes" de Mapplethorpe. Foi isso que fez com que se gritasse "censura" e "puritanismo". Só que, logo a seguir, quer a administração de Serralves quer o presidente da Fundação Mapplethorpe, quer os próprios visitantes da exposição, vieram revelar alguns pormenores que, até ao momento, João Ribas não refutou. Primeiro: Ribas escolheu todas as fotos da exposição e as vinte e uma que ficaram de fora. Segundo: nem todas as que ficaram de fora têm a natureza "chocante" de muitas das que se encontram expostas. Terceiro: as consideradas mais controversas estão numa sala acessível a todos, com a nuance de que nela os menores só podem entrar acompanhados de um representante legal. Quarto: em muitos lugares do mundo a exposição da obra de Mapplethorpe tem este tipo de organização, não se tratando de uma inovação portuguesa.
Ou seja: do que se sabe, este não é um caso de censura da obra artística de Robert Mapplethorpe, nem de puritanismo insólito. O que é, pelo contrário, é um caso em que a ignorância, que sempre foi atrevida, se mostra especialmente afoita.
Aliás, convinha que quem por aí anda a discutir o assunto fosse mesmo a Serralves ver a exposição. Porque continuo a ver muita gente a falar como se o que estivesse na área reservada fossem os nus de Lucian Freud, ou "A Origem do Mundo" de Courbet, ou os corpos deformados de Jenny Saville, ou o "David" de Miguel Ângelo. Não são. Em todas as salas da exposição há nus integrais e órgãos genitais em grande plano. Ninguém precisa de se preocupar. O que está na área reservada é outra coisa, que qualquer pessoa com um conhecimento mediano da obra de Mapplethorpe imagina o que é. Aposto que não haverá muita gente, entre os contestatários, que ache absurdo impedir que um menor lá entre desacompanhado.
Em Portugal, há muita gente que só sabe viver sob o jugo do fascismo. Alguns são fascistas, e gostavam de um Salazar em cada esquina; outros são antifascistas, e vêem um Salazar em cada esquina. O que esta polémica mostrou não foi um país puritano. Foi um país ridículo, com medo do passado e permanentes visões de gente morta, que ainda não percebeu que, na civilização a que aspiramos ser, o bom senso não é necessariamente reaccionário. Isto, sim, é que é a fotografia do nosso atraso.
Advogado