Opinião
O ataque do Bloco Central à liberdade dos portugueses
Por muito que a União possa ser uma força para o bem, e por muito importante que seja aquilo que a nossa democracia deve à integração, nada justifica que actuemos como se os países europeus não tivessem os seus interesses particulares.
"Porreiro, pá", disse José Sócrates a Durão Barroso em Outubro de 2007, enquanto celebravam o fecho das negociações para o Tratado de Lisboa. Sócrates era primeiro-ministro de Portugal, quando o país tinha a presidência da União Europeia, e Barroso era presidente da Comissão. Ambos estavam obrigados àquela alegria, como um dever de ofício, mas ela era genuína e na altura parecia partilhada pelos portugueses, que gostam sempre de se sentir importantes.
Com o Tratado, Portugal perdeu poder de veto em grande parte das matérias, porque as votações no Conselho Europeu passaram a ser feitas em regra por maioria qualificada. Mas em contrapartida teve a sempiterna promessa da solidariedade europeia e da participação em estatuto de igualdade no grande conserto das nações do continente.
Depois veio a crise económica, seguida da crise financeira, da crise do Euro, da bancarrota, do resgate e da imposição das políticas "alemãs" de emergência. De um momento para o outro, muitos dos que antes viam na União a solução para os males do mundo olhavam agora para ela como uma ameaça externa à sobrevivência da pátria.
Portugal tem com a União Europeia uma relação de extraordinária ingenuidade, encapsulada naquele "porreiro, pá!" de Sócrates e Barroso. Por muito que a União possa ser uma força para o bem, e por muito importante que seja aquilo que a nossa democracia deve à integração, nada justifica que actuemos como se os países europeus não tivessem os seus interesses particulares, e como se cada política comunitária ou solução institucional não fosse a legalização da vitória de determinados interesses sobre outros.
Há muito que essa ingenuidade não aparecia de forma tão gritante como nos últimos dias, por causa da proposta da Comissão de alargamento às matérias tributárias da regra da maioria qualificada. Com a previsibilidade do seu europeísmo acrítico, o PS já se mostrou a favor, através do Governo, assim como o PSD, que neste assunto vai a reboque do federalismo do comissário Carlos Moedas.
Como sempre nestas coisas, também a ideia do fim da unanimidade nas políticas fiscais da União nos é apresentada com um objectivo piedoso: facilitar a aprovação de medidas de combate à fraude e à evasão, evitando a necessidade de consenso entre todos os países.
Acontece que a União já tem regras sobre muitas das realidades envolvidas no planeamento fiscal (dividendos, mais-valias, juros, royalties, fusões e aquisições…), sem que a necessidade de consenso tenha impedido o que quer que seja. E, para além disso, é preciso ser mesmo muito ingénuo, ou não perceber bem o que se está a passar, para achar que Portugal poderá ter alguma coisa a ganhar se ficar sem poder de veto no processo de harmonização europeia das políticas tributárias.
A fiscalidade é uma das últimas armas ao serviço das estratégias económicas dos Estados-membros, especialmente dos mais pequenos. E basta um conhecimento superficial dos debates sobre o futuro da fiscalidade para perceber que a intenção dos países ricos, exportadores de capital e tecnologia, é no médio-longo prazo limitar a liberdade das suas empresas de se estabelecerem noutros países.
Imaginemos que, no futuro, França e Alemanha, bramindo contra a "concorrência fiscal desleal", querem medidas fiscais que desincentivem as deslocalizações de empresas para os países mais necessitados de investimento. Imaginemos, por exemplo, a permissão de "impostos de saída" punitivos, ou uma regra de distribuição das receitas fiscais em favor dos países sede do capital e da tecnologia, contra o poder tributário dos países onde as fábricas daquelas empresas estão localizadas. O que é que Portugal poderia fazer para impedir que essas medidas afectassem o investimento e os postos de trabalho da PSA de Mangualde ou da Autoeuropa de Palmela, ou a receita aí gerada para os cofres nacionais? Sem poder de veto, Portugal, por si só, não poderia fazer nada.
É fácil desvalorizar estas preocupações como sendo de um soberanismo antiquado e saloio. Mas o que está em causa é a defesa de um valor sempre actual: a nossa liberdade democrática enquanto povo. Essa liberdade está sob ataque.
Advogado
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