Opinião
Democratas assintomáticos
Rui Rio passou anos a zurzir o governo de Passos Coelho. Isso garantiu-lhe a simpatia da imprensa, particularmente à esquerda, como se ali estivesse um herói da direita democrática. Lentamente, porém, a máscara começa a cair.
1. Na semana passada muitos deputados do PS e do PSD puderam fazer bom uso da máscara com que se apresentam na Assembleia da República, para taparem a cara de vergonha quando aprovaram o fim dos debates quinzenais com o primeiro-ministro. Uns acreditaram que a ideia era boa para a estabilidade do regime, outros que a disciplina de voto era boa para a estabilidade do seu assento no hemiciclo. Se a AR é um parlamento povoado por democratas, então naquele dia os deputados, na sua maioria, estavam assintomáticos.
Foi uma visão surrealista, a do parlamento a reduzir alegremente os seus próprios poderes perante o governo, por iniciativa do líder da oposição, Rui Rio, com a justificação de que o primeiro-ministro tem é de trabalhar e não pode perder tempo a aturar a gritaria dos deputados.
Lembrou-me uma das muitas frases luminosas e cirurgicamente verdadeiras de Alexis de Tocqueville: "O que mais censuro no governo democrático, tal como o organizaram nos Estados Unidos, não é, como muitas pessoas julgam na Europa, a sua fraqueza, mas, ao contrário, a sua força irresistível. E o que me repugna mais na América não é a extrema liberdade que aí reina, mas sim as poucas garantias que aí encontramos contra a tirania".
Tocqueville escreveu sobre os Estados Unidos da primeira metade do Sec. XIX, mas "Da Democracia na América" continua a ser o mais esclarecido elogio da democracia. Lê-lo devia ser tão obrigatório para qualquer deputado quanto o uso de máscara. Pelo menos o capítulo sobre os riscos da "tirania da maioria".
Tocqueville alertou-nos contra a "linguagem de escravo" de quem quer entregar todo o poder à maioria política do momento, por supostamente o povo que ela representa, nos assuntos que lhe dizem respeito, nunca sair dos limites da justiça e da razão. Tocqueville sabia que todas as sociedades têm sensibilidades minoritárias que têm de ser reconhecidas, e que a maioria consegue sempre produzir leis iníquas, que devem ser desobedecidas em nome de uma soberania superior à soberania popular: a ideia de Justiça. Ou, nas palavras do próprio, a "soberania do género humano".
Políticos como Rui Rio, pelo contrário, acreditam que uma maioria é um rei absoluto, com uma bondade incontestável. A interpretação que fazem do conceito de "governo da maioria" é a seguinte: quem ganha eleições governa; quem perde tem como prémio de consolação aguardar pelas próximas eleições numa sala de espera onde se podem fazer uns discursos, sem incomodar em demasia o esforço de quem governa.
Mas o "governo da maioria" não significa apenas o governo de quem ganha. Significa também, e especialmente, o governo capaz de representar o maior número possível de pessoas. É por isso que o parlamento, com o seu trabalho deliberativo, minucioso e de síntese, deve ser o órgão central das democracias. E é por isso que nos parlamentos as minorias da oposição devem ter poderes significativos para fiscalizarem e influenciarem a acção do executivo.
2. O que mais surpreende em tudo isto é que ainda haja quem se surpreenda com a veia autoritária de Rui Rio. João Miguel Tavares escreveu ontem no Público que a proposta de acabar com os debates quinzenais foi a sua "epifania" sobre Rio, num artigo certeiro mas que é um bom exemplo do que digo.
Lamento ter de recorrer à auto-citação, mas há quase três anos, quando Rui Rio estava prestes a liderar o PSD, já aqui apontei essa tendência ("Que Rio é este?", 10.10.2017). Na altura lembrei que, desde que saíra da Câmara do Porto, já lhe tínhamos ouvido as propostas mais absurdas: que os votos em branco deviam dar em cadeiras vazias na AR, que os municípios sobreendividados não deviam ter eleições, que o PR devia tutelar o sistema judiciário ou que devia haver um maior controlo público dos media. Escrevi então que Rio se sente desconfortável com o regime e que as suas ideias, que dizem mais sobre os seus ódios de estimação do que sobre a vida dos portugueses, servem para punir a democracia, não para aperfeiçoá-la.
Rui Rio passou anos a zurzir o governo de Passos Coelho. Isso garantiu-lhe a simpatia da imprensa, particularmente à esquerda, como se ali estivesse um herói da direita democrática. Lentamente, porém, a máscara começa a cair.
Advogado
Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico