Opinião
Carta de um pai de um filho e de uma filha ao Henrique Raposo
Defendes o regresso a uma era pré-Sixties como quem defende uma utopia. Ora, todas as utopias implicam dois riscos.
Caro Henrique,
Li a tua "Carta de um pai de filhas para um pai de filhos" no site da Renascença e tenho acompanhado os teus textos sobre o levantamento contra a cultura do assédio sexual. Estou do teu lado na celebração desse levantamento, mas vivo no desconforto de achar que me vês como um inimigo latente: sou homem ("o problema está no homem"), da direita ("a direita tem um problema com mulheres"), pai de um rapaz ("a mudança passará sobretudo por si, pai de rapazes"), que aplaudiu "o contramanifesto Deneuve" ("o que assusta Deneuve é o regresso de um módico de pudor que a cultura soixante-huitard julgava banido para sempre").
Talvez venha induzido em erro pelo teu estilo. Porventura, a tua brutal definitividade seja mais hiperbólica do que literal. Ainda assim, no conteúdo do que escreves há demasiadas presunções de culpa, que complicam, mais do que iluminam, a discussão. Como pai que ensina a decência em casa, não quero figurar nesses julgamentos colectivos sumários. Como teu amigo e leitor, digo-te que cometes uma imprudência intelectual surpreendente: a soberba revolucionária.
Dizes que o #MeToo irá rever "os códigos morais e sexuais que herdámos da revolução sexual dos anos 60". Dás demasiada importância a essa "revolução". Por um lado, confundes São Francisco e a "Swinging London", mitologias localizadas, com uma revolução real, coerente e planetária. Por outro, achas que o mundo começou a mudar por completo algures "between the end of the Chatterley ban and the Beatles' first LP", como se antes existisse um paraíso de pudor e respeito, e não um inferno de menorização institucionalizada da mulher.
Aliás, não me parece que possamos dizer que a actual cultura do assédio vem desse tempo, quando foi precisamente aí, nesses anos 60, que começou um módico de reequilíbrio do poder entre os sexos. A não ser, claro, que defendamos que a liberdade da mulher foi afinal, uma armadilha, uma nova prisão. Recuso essa versão infantilizada da condição feminina.
Defendes o regresso a uma era pré-Sixties como quem defende uma utopia. Ora, todas as utopias implicam dois riscos. O primeiro é o de nos obrigar a olhar sempre para a realidade a partir da perspectiva que melhor serve essa utopia. É por isso que tu vês a carta de Deneuve e companhia como "um estertor assustado do Maio de 68", quando não é disso que se trata - é, antes, de uma denúncia dos excessos do movimento, seja a nova infantilização da mulher, a criminalização da arte (a do Balthus, do Schiele, do Antonioni…) ou a completa terraplanagem do Estado de direito (leste a Margaret Atwood?).
O que me traz ao segundo risco: a utopia torna-nos imunes aos excessos, porque ela é o fim que justifica todos os meios. A tua crítica de Deneuve está perigosamente próxima da táctica regimental dos revolucionários: quem avisa contra os excessos, é porque defende o Antigo Regime.
É importante que combatamos os excessos, porque eles tiram força à luta necessária pelo "novo protocolo" que defendes. É importante que o "novo protocolo" não arrase outros protocolos da civilização, como a liberdade artística e o primado da justiça. Não quero que os meus filhos sejam vítimas de uma sexualidade bélica e opressora. Mas não os quero também oprimidos por um protocolo de histeria. Não quero que, no processo tortuoso da sua educação sentimental, cuja lei é sempre a da hesitação, do passo em falso, da tentativa e erro, sejam vítimas de acusações de que não se podem defender.
Vamos conversando. Um abraço do teu amigo,
Francisco.
Advogado