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09 de Julho de 2019 às 19:55

Bonifácio, Pena Pires e a nossa circunstância

À primeira vista há uma contradição insanável entre o Pena Pires académico e o Pena Pires político, que a julgar pelo teor reproduzido da entrevista nem o próprio nem o Público se interessaram em dissipar.

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1. Li o polémico artigo de Maria de Fátima Bonifácio no Público ("Podemos? Não, não podemos", 6 de Julho) sem conseguir dele extrair mais do que um arrazoado de generalizações rudimentares e preconceituosas. Aliás, chega a ser inacreditável como é que uma historiadora tão reputada utiliza a "Cristandade" e a Declaração Universal dos Direitos do Homem como argumentos para afirmar que certas raças ou etnias estão natural ou tendencialmente (auto-)excluídas do mundo construído em cima do Cristianismo e do Iluminismo - dois movimentos civilizacionais de expansão e conversão, em nome de uma vocação absolutamente universalista. Talvez Maria de Fátima Bonifácio não seja aquilo que aparentemente o seu texto revelou, mas que se colocou a jeito das críticas, lá isso colocou.

2. Apesar disso, quis dar uma hipótese à discussão. Percebendo que o artigo comentava uma entrevista dada ao mesmo diário pelo sociólogo Rui Pena Pires, sobre o problema do racismo em Portugal, fui ler também a dita entrevista ("PS quer discriminação positiva para negros e ciganos", 29 de Junho). Lembrei-me, entretanto, de que Pena Pires tinha escrito um artigo, dois meses antes e também no Público, em que se opunha à introdução de estatísticas públicas raciais no Censos 2021 ("É possível combater o racismo com a classificação racial dos cidadãos?", 29 de Abril).

 

Pena Pires defende no artigo que o combate ao racismo é incompatível com a institucionalização pelo Estado da classificação racial dos cidadãos. Isto porque "quando o Estado introduz categorias raciais nas estatísticas oficiais contribui para legitimar e naturalizar essas mesmas categorias". Pena Pires parte do princípio de que a categoria "raça" presume que "diferenças na cor de pele correspondem a diferenças culturais". Daí, a sua aceitação institucionalizada "reforça os fundamentos cognitivos do racismo".

 

É-me difícil conceber que o Estado tenha políticas activas de combate ao racismo sem dados estatísticos seguros sobre a configuração étnico-racial da população portuguesa, mas o artigo levanta questões importantes. Questões essas que não são só de princípio. A actual conjuntura política apresenta um risco que Pena Pires identifica bem: "Hoje, o uso identitário de estatísticas raciais, que se fará assim que essas estatísticas estiverem disponíveis, independentemente da vontade e intenções dos seus produtores, facilitará menos a emergência de políticas de reconhecimento de minorias do que de políticas de afirmação nacionalista da maioria."

 

O problema do artigo está no que veio depois dele. Na entrevista de 29 de Junho, na qual fala enquanto co-autor do programa eleitoral do PS, Pena Pires não descarta a possibilidade de determinação pelo Estado de quotas étnico-raciais, por exemplo nas listas de deputados e no ingresso nas universidades.

 

Ora, sem falar dos demais problemas envolvidos na ideia deste tipo de quotas, impõe-se a seguinte questão: como é que se compatibiliza a aceitação da possibilidade de discriminação positiva de cidadãos com base na sua classificação racial com a ilegitimidade dessa mesma classificação para efeitos estatísticos? Aliás, como é que o Estado estabeleceria quotas - a favor de quem, com que graduação - se não quer saber do que está a falar?

 

À primeira vista há uma contradição insanável entre o Pena Pires académico e o Pena Pires político, que a julgar pelo teor reproduzido da entrevista nem o próprio nem o Público se interessaram em dissipar. O que, sinceramente, não tendo por razões óbvias o impacto do artigo de Maria de Fátima Bonifácio, também diz muito sobre a ligeireza com que debatemos estes assuntos importantes, e sobre a nossa fragilidade enquanto comunidade política. 

 

Advogado

 

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

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