Opinião
A facilitação do facilitismo
Rui Rio tem vindo a defender insistentemente que há uma "crise de regime" e que a democracia portuguesa está doente. É dos poucos assuntos políticos de que o ouvimos falar insistentemente. O problema é que, de cada vez que Rio fala dele, só lhe ouvimos ideias pouco democráticas.
Seja a sugestão de um maior controlo político dos media e das magistraturas, seja a de que os municípios sobreendividados não deveriam ter eleições, seja a já clássica defesa de que o número de deputados deveria ser reduzido na medida dos votos brancos e nulos. Na semana passada, embalado pela fraca participação nas Europeias, Rio voltou à carga com esta última ideia (ainda que "a título pessoal").
A ideia é antidemocrática porque é contrária a um princípio sem o qual nenhuma democracia funciona: um voto que corresponde a uma declaração com um conteúdo exacto e um sentido discernível não pode valer o mesmo que um voto que corresponde a uma declaração de conteúdo ambíguo e sentido inalcançável.
Na verdade, aqui a democracia é só um aspecto da sociedade em geral. Se nas relações humanas atribuíssemos à ambiguidade um valor igual ao da clareza, a comunicação seria impossível e a civilização seria, para usar um eufemismo, algo de muito diferente.
Quando alguém vota num determinado partido ou candidatura, está a conferir um mandato preciso. Ou seja, está a dizer com evidência que quem deseja que governe são aquelas determinadas pessoas, com aquelas determinadas medidas que prometeram. A cruz que se coloca num boletim de voto é das declarações mais claras que existem. Mesmo que se vote sem grande convicção, esperança ou entusiasmo, aquela cruz significa que, de todas as opções disponíveis, a que se prefere é a que ela representa.
O contrário é o quê? O que é que significam os votos brancos ou nulos? Lamento, mas não significam nada. Ou então significam um número incalculável de manifestações de descontentamento, desinteresse, desdém e escárnio, tão vagas, díspares e contraditórias, que no global vão dar ao mesmo - ao vazio.
O conjunto dos votos brancos e nulos é um resultado tão difuso que é absolutamente improdutivo do ponto de vista democrático. Dele não é possível retirar nada de útil e minimamente congruente para a organização política de uma comunidade. Muito menos numa democracia funcional como a nossa, com opções político-partidárias diversificadas, que professam a generalidade das doutrinas e ideologias conhecidas, mais ou menos tradicionais, e em que não há qualquer entrave sério à participação política dos cidadãos, incluindo através da adesão ou criação de partidos.
Quem vota branco ou nulo não diz o que quer. Diz, talvez, que não quer nada do que lhe é apresentado; mas não diz nem o porquê nem o que que gostaria que lhe fosse apresentado em alternativa. São opções facilitistas, que para defesa da democracia não podem ser facilitadas.
É óbvio que uma democracia não pode estar de bem com ela própria se conviver com números significativos e crescentes de pessoas que se dão ao trabalho de ir às urnas depositar um voto branco ou nulo. Os políticos devem tentar captar um qualquer sentido minimamente unificador destes comportamentos e actuar em conformidade, para darem respostas satisfatórias a essas pessoas.
Mas isso implica tentar que, no futuro, estes votos se transformem em votos explícitos. Ora, aquilo que Rui Rio gostaria era que aceitássemos os votos brancos e nulos, não como uma patologia, mas como um elemento normal da democracia, com o mesmo valor de um voto no partido A ou no candidato B. Isso não seria o aperfeiçoamento do regime: seria a desistência e a subversão da democracia.
Aliás, alguém duvida de que, a partir do momento em que os votos brancos e nulos (ou mesmo só os votos brancos) passassem a ter o efeito de reduzir o número de deputados, esses votos aumentariam exponencialmente? Eu não. O que, além do mais, teria a consequência perniciosa de impedir a renovação das elites, porque os menos afectados pelo peso dos votos antissistema seriam naturalmente aqueles que, escudados nos directórios partidários, concorrem nos lugares de topo das listas de deputados.
Advogado
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