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11 de Junho de 2019 às 20:20

A facilitação do facilitismo

Rui Rio tem vindo a defender insistentemente que há uma "crise de regime" e que a democracia portuguesa está doente. É dos poucos assuntos políticos de que o ouvimos falar insistentemente. O problema é que, de cada vez que Rio fala dele, só lhe ouvimos ideias pouco democráticas.

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Seja a sugestão de um maior controlo político dos media e das magistraturas, seja a de que os municípios sobreendividados não deveriam ter eleições, seja a já clássica defesa de que o número de deputados deveria ser reduzido na medida dos votos brancos e nulos. Na semana passada, embalado pela fraca participação nas Europeias, Rio voltou à carga com esta última ideia (ainda que "a título pessoal").

 

A ideia é antidemocrática porque é contrária a um princípio sem o qual nenhuma democracia funciona: um voto que corresponde a uma declaração com um conteúdo exacto e um sentido discernível não pode valer o mesmo que um voto que corresponde a uma declaração de conteúdo ambíguo e sentido inalcançável.

 

Na verdade, aqui a democracia é só um aspecto da sociedade em geral. Se nas relações humanas atribuíssemos à ambiguidade um valor igual ao da clareza, a comunicação seria impossível e a civilização seria, para usar um eufemismo, algo de muito diferente.

 

Quando alguém vota num determinado partido ou candidatura, está a conferir um mandato preciso. Ou seja, está a dizer com evidência que quem deseja que governe são aquelas determinadas pessoas, com aquelas determinadas medidas que prometeram. A cruz que se coloca num boletim de voto é das declarações mais claras que existem. Mesmo que se vote sem grande convicção, esperança ou entusiasmo, aquela cruz significa que, de todas as opções disponíveis, a que se prefere é a que ela representa.

 

O contrário é o quê? O que é que significam os votos brancos ou nulos? Lamento, mas não significam nada. Ou então significam um número incalculável de manifestações de descontentamento, desinteresse, desdém e escárnio, tão vagas, díspares e contraditórias, que no global vão dar ao mesmo - ao vazio.

 

O conjunto dos votos brancos e nulos é um resultado tão difuso que é absolutamente improdutivo do ponto de vista democrático. Dele não é possível retirar nada de útil e minimamente congruente para a organização política de uma comunidade. Muito menos numa democracia funcional como a nossa, com opções político-partidárias diversificadas, que professam a generalidade das doutrinas e ideologias conhecidas, mais ou menos tradicionais, e em que não há qualquer entrave sério à participação política dos cidadãos, incluindo através da adesão ou criação de partidos.

 

Quem vota branco ou nulo não diz o que quer. Diz, talvez, que não quer nada do que lhe é apresentado; mas não diz nem o porquê nem o que que gostaria que lhe fosse apresentado em alternativa. São opções facilitistas, que para defesa da democracia não podem ser facilitadas.

É óbvio que uma democracia não pode estar de bem com ela própria se conviver com números significativos e crescentes de pessoas que se dão ao trabalho de ir às urnas depositar um voto branco ou nulo. Os políticos devem tentar captar um qualquer sentido minimamente unificador destes comportamentos e actuar em conformidade, para darem respostas satisfatórias a essas pessoas.

 

Mas isso implica tentar que, no futuro, estes votos se transformem em votos explícitos. Ora, aquilo que Rui Rio gostaria era que aceitássemos os votos brancos e nulos, não como uma patologia, mas como um elemento normal da democracia, com o mesmo valor de um voto no partido A ou no candidato B. Isso não seria o aperfeiçoamento do regime: seria a desistência e a subversão da democracia.

 

Aliás, alguém duvida de que, a partir do momento em que os votos brancos e nulos (ou mesmo só os votos brancos) passassem a ter o efeito de reduzir o número de deputados, esses votos aumentariam exponencialmente? Eu não. O que, além do mais, teria a consequência perniciosa de impedir a renovação das elites, porque os menos afectados pelo peso dos votos antissistema seriam naturalmente aqueles que, escudados nos directórios partidários, concorrem nos lugares de topo das listas de deputados.

 

Advogado

 

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

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