Opinião
Filhos e enteados
Os críticos do nepotismo na política portuguesa acham frequentemente que ele mostra que somos um país atrasado. Acontece que não há nada de exclusivamente terceiro-mundista no nepotismo.
Querer beneficiar os mais próximos é uma forma milenar de favoritismo que tem atravessado, incólume, todas as civilizações e regimes, incluindo as democracias mais antigas.
Nos Estados Unidos, que não consta que sejam uma ditadura subsariana ou uma monarquia absolutista, por pouco não vimos Hillary Clinton chegar à Casa Branca nas últimas presidenciais. Hillary é mulher de Bill, o antepenúltimo presidente, e podia ter-se candidatado contra Jeb Bush, que tentou a sua sorte nas primárias. Jeb é filho de George H e irmão de George W., respectivamente o antecessor e o sucessor de Bill.
Quando em 2000 venceu Al Gore (outro filho de uma antiga dinastia política), George W. encheu o topo da administração de apelidos célebres e amigos (Powell, McConnell, Scalia, Rehnquist, Cheney, entre outros), o que deu polémica para vários meses. Na altura, o editor literário Adam Bellow resolveu escrever um livro em louvor do nepotismo, que saiu em 2003. Chama-se, precisamente, "In Praise of Nepotism".
Para Bellow, o nepotismo é uma manifestação do desejo do ser humano, natural e irreprimível, de transmitir conhecimento, propriedade e autoridade às gerações que lhe sucedem. Não é uma construção cultural: é um instinto biológico tão básico quanto o sexo.
Mais: é por causa desse instinto que as civilizações se vão aguantando de pé, porque na base do nepotismo está uma relação profundamente moral, que assegura a transmissão geracional dos valores culturais e sociais de uma determinada comunidade. É nela, de resto, que assenta o próprio sistema capitalista, uma vez que não há maior incentivo à inovação e à criação de riqueza do que a preocupação com o bem-estar da descendência.
Para além disso, um certo princípio dinástico é sempre um correctivo para as tendências extremas da "meritocracia", que também pode ser uma espécie de ditadura. Bellow explica: "Uma elite que se considera destinada a governar em virtude do seu mérito não tem gratidão nem respeito por ninguém. Não tem qualquer laço ético com as pessoas comuns e, portanto, é insensível às suas necessidades".
"In Praise of Nepotism" é um belíssimo livro, com teses desafiadoras mas plausíveis e bem argumentadas, que eleva o debate e dá pistas importantes para a compatibilização das vantagens do favoritismo sanguíneo com o espírito democrático. Tem, no entanto, o "problema" de ter sido escrito por quem foi. Adam Bellow é filho de Saul Bellow, o grande escritor americano, e nunca realmente se conseguiu livrar da suspeita de que aquela longa teorização sobre o nepotismo mais não é do que uma justificação rebuscada da sua própria história de vida.
Confesso que me lembrei de "In Praise of Nepotism" quando vi Carlos César justificar os inúmeros casos de nomeações familiares do PS. E digo "confesso" porque é quase um crime comparar, ainda que inadvertida e mentalmente, o exercício intelectual de Adam Bellow com o exercício de cinismo de César, ao dizer em causa própria (partidária e pessoal) que há famílias com maior "vocação" do que outras para a política.
Nos afazeres privados, o nepotismo pode ser uma virtude; nos assuntos públicos, é essencialmente um vício (Bellow di-lo, aliás). Quando Carlos César se defende com a "vocação", como se ele e os seus fossem uma casta à parte, ungida pelos deuses, está a lembrar-nos de como o nepotismo é o exacto oposto da democracia, na qual não pode haver filhos e enteados no acesso ao poder. E não se pode depois queixar dos "populismos", quando reparar que as pessoas percebem que temos uma classe política insular, para quem a gestão da causa pública se calhar é menos uma missão de serviço do que um modo de vida e sustento.
Sim, talvez o nepotismo seja intrínseco ao Homem. Mas a civilização também é o caminho para longe desse estado natural.
Advogado
Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico